Caso Ortinho: pense duas vezes antes de agredir

Texto de Gabriela Monteiro.

Estive longe da cidade e dos meios de comunicação por uns dias. Assim que cheguei, várias pessoas vieram me falar das declarações polêmicas de Ortinho, músico e vocalista da banda Querosene Jacaré. Para contextualizar, em 20 de julho, Festival de Inverno de Garanhuns (PE), Ortinho disse durante seu show: “Só respeitem as mulheres grávidas, nas outras podem meter o dedo no parreco que elas querem dar. Podem meter o dedo, que todo mundo quer foder”.

Ora, quando vemos uma declaração tão explícita de machismo e violência como essa, não imaginamos que haja muito o que relativizar. Para mim, é evidentemente criminosa, incita a violência sexual e merece punição. Muitas pessoas também entenderam o mesmo e fiquei sinceramente feliz de ver a repercussão geral.

Algumas das maiores dificuldades no enfrentamento à violência contra a mulher são o silêncio e a naturalização. Se houve muito barulho e indignação depois do ocorrido, ótimo. Temos mais é que romper a cultura de sentir vergonha, medo ou pôr panos quentes porque o agressor é “assim mesmo”, “é o jeito dele” ou “tinha bebido demais”, como muitas vezes ouvi de mulheres agredidas e inseguras que se culpavam pela violência cometida por seus parceiros. À agressão, o lugar de agressão. Ao agressor, o mesmo. À vítima, apoio.

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Imagem de repúdio as declarações do músico Ortinho. Divulgada pela página da Marcha das Vadias de Recife no Facebook.

Não parece muito difícil de entender, mas a construção de uma sociedade igualitária é realmente lenta e envolve o diálogo entre uma pluralidade de vozes que muitas vezes confundem esses papéis. O próprio cantor divulgou uma nota nas redes sociais tentando se retratar e muita gente saiu em sua defesa. É perfeitamente compreensível, inclusive, um direito dele de se justificar e pedir desculpas. Mas aí entra algo que para mim é a pedra de toque de toda essa história: responsabilidade. Pediu desculpas? Tudo bem, talvez até sejam aceitas. Mas isso não pode de forma alguma isentar o ato nem o machismo do ato. Não confundamos alhos com bugalhos.

Os principais argumentos dos que pretendem tornar inofensiva a declaração do cantor se dividem, principalmente, entre o que podemos classificar como sendo apenas uma “brincadeira” ou ainda “expressão artística”. Claro que também cabem as variáveis, que dizem que o cantor foi levado muito a sério; o punk é mesmo irreverente; a censura e a patrulha dos bons costumes querem tolher a liberdade do artista, etc. Mais uma vez, a violência contra a mulher aparece naturalizada ou minimizada e há todo um trato amigável ao redor do ato. Se você fizer uma crítica (legítima) a uma agressão (criminosa), pode ser vista como chata, moralista e sem senso de humor.

Uma das grandes estratégias do patriarcado sempre foi ridicularizar os discursos feministas. Lembro-me de uma charge, feita em tempos de luta contra a ditadura militar, em que os militantes diziam com impaciência: “está bem, feministas, vamos lutar pelos direitos humanos e depois vemos as questões de vocês”. As feministas, historicamente, têm sido retratadas como reclamonas, inconvenientes, mal-amadas, histéricas… Uma mulher que foi agredida por um comentário misógino será duplamente agredida por uma sociedade que não reconhece a legitimidade do seu direito de viver uma vida livre de violência e vai zombar da sua resistência. Afinal, no patriarcado, as boas moças ficam quietinhas. Quantas mulheres vítimas de violência doméstica não engolem o choro para que os vizinhos não escutem a agressão?

Vamos aliar a isso a já famosa cordialidade brasileira, que negativiza a crítica e empurra as tensões de classe, raça e gênero para debaixo do tapete. Nessa proposta, a suposta tolerância e compreensão ignoram o conflito como uma dinâmica fundamental das relações interpessoais e da cultura. A ilusão do bom convívio se faz necessária para a manutenção de uma ordem e uma estrutura social excludente. Aquilo que não é integrado e encarado segue acontecendo, mas sob a máscara afável do bom humor brasileiro. Aqui, novamente, teremos a reação comum de que o problema é de quem crítica (essas pessoas pentelhas!) e não de quem agride. Já é material suficiente para um coquetel molotov de machismo e apatia política, mas no caso Ortinho ainda temos a cereja do bolo: o status de artista.

Recentemente, tivemos o diretor de teatro Gerald Thomas atacando Nicole Bahls, repórter do programa Pânico, e afirmando, orgulhoso: “Meti a mão na menina. E tudo termina nos panos quentes, CPI que acaba em pizza, como todas as coisas no Brasil, esse paisinho de quarto mundo, Corsa que quer ser Mercedes”. Ele ainda classificou como moralistas as pessoas que o criticaram. Gerald Thomas segue à risca os conselhos de Ortinho e ‘mete o dedo’ numa mulher para depois surgir como um tipo de paladino da irreverência e ousadia artística, disposto a romper com o conservadorismo da sociedade. O que é até irônico, pois nada é mais arcaico, opressivo e conservador quanto a perpetuação das relações de poder e mentalidades patriarcais.

Porém, nos aponta uma questão muito grave: a de que o artista seria alguém isento de moral. Bem, se o artista pode cometer uma violência e sair impune, porque é protegido pelo seu status — ou pior, pode até querer qualificar a violência cometida como arte —, quais as implicações disso? Imaginem se outros grupos ou classes também se considerassem acima da lei. Então, nós teríamos a elite se sentindo desobrigada a seguir os regimentos legais aplicados ao cidadão comum. Ou políticos que cometem diversos crimes e não respondem por eles. Talvez até queimássemos índios pensando que eram mendigos ou atropelássemos pedreiros com nossos carros milionários. E, se houvesse repreensão, poderíamos dizer: “Você sabe com quem está falando?”. Imaginem só em que sociedade caótica viveríamos, se a lei fosse aplicada apenas em alguns.

Outras pessoas da cena musical pernambucana se posicionaram defendendo o cantor. Catarina Dee Jah comentou o episódio apelidando Ortinho de ‘Genivaldo’, numa referência à canção de Chico Buarque em que a travesti Geni é apedrejada. A vitimização — em alguns casos até a glamourização — do agressor é fenômeno comum numa sociedade machista. Há 30 anos, por ocasião do seu primeiro julgamento, o playboy Doca Street foi inocentado e ovacionado pelo país inteiro. Pediam-lhe autógrafos nas ruas. Ele havia assassinado com quatro tiros a socialite Ângela Diniz, sua então namorada. Virou ídolo nacional e sex symbol e nem faz tanto tempo assim. É só um caso emblemático para ajudar a compreensão de como a nossa construção histórica desresponsabiliza o agressor e não o trata como tal.

No caso Doca Street, as feministas (elas de novo!) fizeram enorme pressão e um novo julgamento o condenou. Na época, a defesa justificava o ato dele como legítima defesa da honra, uma vez que Ângela Diniz era considerada uma mulher imoral, que tinha vários parceiros sexuais. Mais uma vez vemos a inversão dos papeis. Responsabilizar a vítima é um fenômeno comum numa sociedade machista. E temos aí a defesa da honra como uma das estratégias utilizadas para inocentar o agressor. Muitas vezes, a violência contra a mulher vem, por exemplo, disfarçada de crime passional, quando o agressor se justifica por estar sob violenta emoção ou, em outras ocasiões, sob o efeito de substâncias.

Em sua nota de desculpas, Ortinho culpou o álcool pelo seu comportamento. Também lembrou que como ser humano é passível de erros. Se a pessoa tem problemas de dependência química, ela precisa e merece apoio para lidar com isso. Que o ser humano é passível de erros já é uma coisa tão óbvia (e vaga) que não poderia ter valor como argumento. Mas, o fato é que os atos são irreversíveis e que, mesmo que hajam atenuantes, é preciso arcar com as consequências. O álcool não pode ser utilizado para transformar o agressor em vítima. E isso não é um juízo de valor. Não é um enredo de julgamentos dualistas em que bons e maus disputam o poder e a razão. É cidadania, minha gente. Precisamos romper os paradigmas que reproduzem culturalmente, sustentam coletivamente e cultivam individualmente a desresponzabilização do agressor.

Vários trechos da carta de Ortinho e de Catarina merecem uma leitura e um debate a partir de uma perspectiva feminista. Quando ela fala sobre as mulheres de Pernambuco, diz que “nossas Sinhás moças adoram ir a uma festa temática soltar a pomba gira ao som de músicas sexistas, pedófilas e que retratam essa tão repudiada violência à mulher”. Essa é uma variação pouco distinta do argumento machista que motivou o surgimento da Marcha das Vadias. Usou roupa curta, tomou todas, desceu até o chão? Pediu violência, diz o machismo. Nosso esforço é para estabelecer de uma vez que uma mulher tenha o direito de se divertir, de ter liberdade sexual, se vestir como quiser e não seja desrespeitada por isso. Para ilustrar a popularidade dessa ideia, você pode fazer uma busca rápida no Google pela expressão “mulheres que se dão ao respeito” e vai encontrar mais de 6.000 resultados. A expressão “Homens que se dão ao respeito”  resultam em míseras nove páginas…

Em outro momento, ela diz que “violência é deixar milhares de mulheres sem direito ao aborto”. Nisso estamos totalmente de acordo, companheira. Mas, vale lembrar que o mesmo sistema de dominação patriarcal que instrumentaliza o corpo das mulheres é o que traz os entraves à legalização do aborto. Numa ideologia que me desautoriza a decidir sobre o meu próprio corpo, não posso interromper uma gravidez, não posso dançar ou me vestir da maneira que eu quiser e também não posso me chatear se algum cantor ou diretor de teatro mete o dedo em mim. Porque no patriarcado, eu não sou dona do meu corpo e da minha vontade — os homens, sim, são protagonistas e podem fazer comigo o que quiserem. Por isso, é que não dá para gente dizer que existe um machismo light e um machismo sério. É preciso entender como se dá essa opressão sobre os corpos e as psiques das mulheres para perceber a complexidade da estrutura dominante.

Ainda sobre os textos que circularam depois do episódio, vale a pena ler a excelente nota de repúdio da Marcha das Vadias de Recife e de outros coletivos feministas sobre o episódio. A Secretária da Mulher do Estado de Pernambuco, Cristina Buarque (preciso dizer que é feminista?) também mandou super bem na nota de repúdio do governo, lembrando que a atuação pública do cantor constitui um crime previsto no Código Penal, em seu artigo 286. Mais uma vez, a mobilização e a reação feminista se fazem indispensáveis para que o machismo não siga natural e invisibilizado.

Quando um cantor como Ortinho incita à violência sexual não é performance, é agressão. Quando um comediante como Rafinha Bastos incita à violência sexual, não é piada, é agressão. Vamos aprender a reconhecer, enfrentar e punir a violência contra a mulher, independente de esta surgir de forma sutil ou escancarada. E, por favor, dissociar isso de arte ou humor. Se você, companheira, também se sentiu agredida, humilhada ou constrangida por essa ou outra declaração do cantor, meta a colher. Não há outro caminho para avançarmos na garantia de equidade de gêneros.

Citando Charles Fourier: “O grau de civilização de uma sociedade se mede pelo grau de liberdade da mulher”. O ex-ministro do STF, Ayres Brito, também lembrou dessa frase ano passado, em seu voto no julgamento que descriminalizou a interrupção da gravidez em casos de fetos anencéfalos no Brasil.

Nós não estamos fazendo drama. Estamos tentando construir uma sociedade com igualdade de gêneros. Não invalide nossos argumentos culpando nossos hormônios ou algo do tipo. Aliás, não nos culpe de jeito nenhum porque já estamos cheias disso. Nós estamos exigindo uma vida com o respeito que merecemos. Enquanto não houver justiça, haverá resistência feminista.

Gabriela Monteiro.
Gabriela Monteiro.

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Gabriela Monteiro é negra, feminista, educadora política e filha de Iansã. Vive em Caruaru, interior de Pernambuco.