Texto de Lisa Wade. Tradução de Liliane Gusmão.
Publicado originalmente com o título: My two cents on Feminism and Miley Cyrus, no site Sociological Images em 14/10/2013.
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Estranhamente, três grandes nomes da música viram-se recentemente envolvidas numa discussão sobre o que significa ser feminista. Podemos agradecer essa oportunidade à Miley Cyrus. Depois de dizer que o vídeo ‘Wrecking ball‘ foi inspirado em ‘Nothing compares to you‘ , Sinead O’Connnor escreveu uma carta aberta para a artista. Sem dúvida, considerando a performance de Miley no VMA da MTV, Sinead argumentou que a indústria fonográfica iria explorar o corpo de Miley e esvazia-la de humanidade. Amanda Palmer, outra instrumentista de personalidade forte, respondeu à carta de Sinead. Ela contra argumentou que todo esforço para controlar as escolhas das mulheres, não importa o quão benevolente, é anti-feminista.
Tenho recebido muitos pedidos para dar minha opinião sobre o assunto. Então lá vai: eu acho que as duas estão certas. E quando coloca-se os dois lados juntos, a conclusão não é tão simples quanto elas concluíram. As duas cartas (da Sinead e da Amanda) são gentis, convincentes e inteligentes, mas nenhuma delas captura as contradições profundas que Miley — e todas as mulheres nos Estados Unidos — enfrentam diariamente.
Cyrus em Wrecking Ball:
Sinead O’Connor avisa Miley que a indústria fonográfica é capitalista e patriarcal. Ela explica detalhadamente que os capitalistas nunca vão pagar o que Miley vale, pois fazê-lo os deixaria sem lucro. O objetivo é explorá-la. Enquanto isso, a exploração vai claramente ser generificada, pois o machismo é o tecido do qual é feita a indústria. Sinéad escreve:
“A indústria musical não dá a mínima para você, nem para ninguém. Eles vão te prostituir por tudo que você vale… e quando você estiver no fundo do poço, como resultado dessa prostituição, eles vão estar tomando sol no seus iates em Antiqua, iates que eles compraram vendendo o teu corpo…”
Se Miley Cyrus vai acabar ou não no fundo do poço só o futuro dirá, mas Sinéad tem razão sobre a indústria fonográfica. Não há necessidade de argumentar sobre isso, é assim que as coisas funcionam numa sociedade capitalista patriarcal. Indústrias baseadas no lucro se interessam em lucrar. Pode-se achar isso bom ou ruim, mas essas indústrias sobrevivem do lucro e vão achar toda e qualquer maneira para arrancar dinheiro de bens e serviços. E, fazem isso vendendo caro o que se compra barato. Além disso, as empresas de mídia de todo tipo são dominadas, em quase todos os níveis, por homens (brancos e ricos). Estes são os fatos.
Amanda discorda e diz que Sinéad está, por sua vez, contribuindo para a opressão das mulheres. Todas as escolhas das mulheres, argumenta Amanda, deveriam ser consideradas válidas.
“Eu quero viver num mundo em que, Nós, mulheres, determinemos o que vestir ou como nossa aparência deve ser. Onde possamos viver segundo nossas próprias vontades, seja de calças do exército num minuto ou um vestido deslumbrante no outro, nós decidiremos se vamos nos divertir com o olhar masculino ou não…”
Na utopia de Amanda, ninguém decide o que é melhor para as mulheres. O importante é ter todas as opções a seu dispor, sem censura, para que as mulheres escolham e mudem de ideia segundo seus próprios desejos.
Isso é intuitivamente agradável e parece se encaixar com o que entendemos por liberdade. As mulheres, hoje, realmente tem muito mais escolhas — muito, muito mais escolhas — do que outras gerações de mulheres. Somos livres para votar em eleições, usar calças compridas, fumar em público, ter contas bancárias, praticar esportes, trabalhar em áreas antes consideradas exclusivas de homens e, sim, ser descaradamente sexuais. Podemos até concorrer a Presidência da República. E ainda podemos fazer coisas femininas também! Nós mulheres fizemos muitas conquistas e Amanda está certa, nós devemos defender tudo que já conquistamos.
Se tanto Sinéad quanto Amanda defendem argumentos feministas, então, qual é a causa da discórdia?
Sinéad e Amanda estão usando níveis diferentes de analise. A análise de Amanda é objetivamente individualista: cada mulher deveria ter individualmente o direito de escolher o que ela quer fazer. Enquanto Sinéad é acentuadamente institucional: estamos todas operando dentro de um sistema — indústria musical nesse caso ou mesmo a sociedade — e esse sistema é poderosamente determinista.
A verdade é que as duas estão certas e por isso nenhuma delas vê o quadro inteiro. De um lado as mulheres estão fazendo escolhas individuais, elas não são marionetes do sistema. São elas quem decidem seus destinos. Por outro lado, estas escolhas estão sendo feitas dentro de um sistema. O sistema define os prós e os contras, recompensas e punições, os caminhos do sucesso e as armadilhas que levam ao fracasso. Nem toda força do pensamento vai fazer isso mudar. Nenhuma escolha individual vai mudar essa realidade.
Então Miley está realmente “no comando do seu próprio show” como Amanda colocou. Ela pode ter escolhido ser a “garota sexy, furiosa e nua fazendo o twerk” pela sua própria vontade. Mas por quê? Porque é isso que o sistema recompensa. Isso não é liberdade, isso é estratégia.
Em termos sociológicos, poderíamos chamar isso de barganha patriarcal. Mulheres e homens fazem isso e essa barganha pode assumir diferentes formas. Geralmente, contudo, a barganha envolve uma escolha para manipular o sistema em benefício próprio, sem desafiar o sistema. Isso pode maximizar os benefícios acumulados a uma mulher em particular, mas prejudica as mulheres coletivamente. A barganha feita por Miley — aceitar objetificação sexual em troca de dinheiro, fama, poder — é bastante comum. Serena Willians, Tila Tequila, Kim Kardashian e Lady Gaga fazem isso também.
No entanto, todas somos Miley Cyrus. Todas nós fazemos barganhas patriarcais, grandes ou pequenas. Donas de casa fazem quando apoiam a carreira do marido e concordam em compartilhar os dividendos com ele. Muitas mulheres emancipadas fazem quando entram em partes do mercado de trabalho tradicionalmente masculinas para colher os benefícios, mas não acreditam que questionar essa tradição é válido. Nenhuma de nós esta isenta nesse mundo.
Então, Miley Cyrus é joguete da indústria patriarcal? Não.
As escolhas dela podem ser descritas como boas para as mulheres? Também não.
É assim que o poder funciona. Ele faz com que, essencialmente, qualquer escolha que façamos possa ser absorvida e mobilizada em benefício do sistema. Lutar contra ele em benefício das minorias — nesse caso as mulheres — requer sacrifícios individuais que custam caro. No caso de Miley, seu sucesso é também a afirmação de que o valor de uma mulher está ligado a sua disposição de mercantilizar sua sexualidade.
Norte-americanas querem que suas histórias tenham finais felizes. Eu sinto muito não ter uma visão mais otimista. Se a resposta para esse enigma fosse fácil, já o teríamos resolvido.
Mas uma coisa é certa: será necessário um sacrifício coletivo para construir um mundo onde a humanidade das mulheres esteja tão estabelecida que as escolhas individuais de cada mulher não prejudiquem as outras. Para chegar lá, precisamos conhecer o sistema, reconhecer umas as outras como indivíduos conscientes, e ter empatia para com a escolhas difíceis que todas fazemos tentando navegar nesse mundo injusto.
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Lisa Wade é crítica cultural, socióloga e professora em Los Angeles, Califórnia. Saiba mais sobre ela no Twitter e no Facebook.