‘Looking’, Kaique e a peça de Shakespeare

Texto de Jamil Cabral Sierra.

Quatorze anos se passaram desde o primeiro episódio da lendária série gay ‘Queer as Folk, que marcou toda uma geração de rapazes no começo dos anos 2000. Lembro que vi a série toda de uma vez só e juntava, lá em casa, amigos para assistir e comentar os episódios.

Mesmo tendo ido ao ar já depois da virada do século, ainda era importante, para a época recém saída dos amargos anos 1990 — marcados fortemente pelo vácuo oitentista do preconceito e da vitimização promovida pela Aids —, um programa de TV falar da discriminação contra a população LGBT, contar histórias de preconceito, estabelecer relações conflituosas entre homo e heterossexuais, mostrar os dilemas de jovens gays saindo do armário, refletir sobre as vivências de pessoas soropositivas, marcar politicamente territórios de militância bem definidos e, sobretudo, explicitar – como nenhuma outra série havia feito até então – a liberação sexual que gays podiam experimentar numa grande cidade.

Pois bem! Passados todos esses anos, eis que surge no canal HBO uma nova série gay, chamada ‘Looking (criada por Michael Lannan e dirigida por Andrew Haigh, do filme ‘Weekend’), também disposta a retratar o universo gay contemporâneo. Só que agora sai de cena a fictícia cidade de ‘Queer as Folk’ e a lengendária boate Babylon, para dar lugar a real São Francisco e sua baía; de onde se disseminou, poderíamos dizer, o que hoje conhecemos como “cultura gay”.

'Looking' nova série da HBO. Foto: Divulgação/HBO.
‘Looking’ nova série da HBO. Foto: Divulgação/HBO.

Depois de assistir ao primeiro episódio fica mesmo a sensação de que uma década e meia parece pouco, mas é suficiente para nos mostrar que muita coisa mudou no que se refere à forma pela qual a população LGBT, especialmente homens-cis-gays-brancos de grandes metrópoles, é retratada na televisão (inclusive na TV do Brasil). É perceptível uma mudança na maneira como tais personagens vivem, na telinha, suas experiências amorosas, sexuais e políticas.

Mesmo diante de toda discriminação que ainda nos cerca e nos mata, parece que o estilo de vida gay capturado e veiculado pela TV quer dizer outra coisa, assegurar novas demandas, que pouco tem a ver com os temas que rondavam os mesmos personagens alguns anos atrás e que, invisibilizados pela televisão de hoje, são vendidos com uma ameaça pouco provável. No entanto, o caso mal explicado da morte de Kaique é um bom exemplo disso caso. Divulgado como suicídio pelas autoridades policiais, primeiramente questionado pela família e depois estranhamente confirmado pela mãe do jovem em entrevista coletiva, mostra que ainda, especialmente no contexto brasileiro (mas não só nele), há muita dificuldade em enfrentar a homofobia e o racismo. Mas parece que esses episódios não interessam muito às histórias sobre gays que hoje nos são contadas na televisão.

Nesse sentido, se em ‘Queer as Folk’ a tônica principal era mostrar como a comunidade LGBT era diferente e afirmava essa diferença como um traço político contestatório da norma heterossexual (é só lembrarmos as célebres frases do personagem Brian e os embates políticos que a série fazia), em ‘Looking’ o esforço todo, ao menos diante do que vi no primeiro episódio, é mostrar como gays são completamente “normais” e estão, definitivamente, incluídos no mainstream. Sim, sim… Eles ainda se pegam no parque da cidade, caçam na Internet, fazem sexo a 3 mas, no fundo, no fundo, querem mesmo casar e ter filhos (como o personagem Niko da novela ‘Amor à Vida‘). Não à toa, os três protagonistas da trama (um designer de games, um aspirante à artista plástico e um garçom) estão às voltas não com a violência e com o preconceito, não com as questões de militância, não com a liberação sexual, mas sim com suas incapacidades de encontrar um companheiro, de se dar bem profissionalmente, de lidar com a velhice que chega.

Por isso, não esperem da série, mesmo sendo uma produção da HBO, tão acostumada a oferecer sexo em seus shows, cenas quentes como adorávamos ver em ‘Queer as Folk’. Pelo menos o episódio 1 não tendeu nessa direção. E a tendência da série talvez não seja essa mesmo, de centrar-se na pegação, justamente porque não se trata mais de mostrar o sexo entre homens (ou entre mulheres, como também fez a badaladíssima ‘The L Word) como a grande novidade ou, ainda, como o grande gesto perturbador.

Parece que diante da assimilação não há mais o que perturbar, não há mais o que corromper, não há mais o que enfrentar. Trata-se, agora, diante de tal sentimento de pertencimento à norma, de mostrar como depois de incluídos no mainstream-branco-de-classe-média-urbanizado os gays, “genten como a genten”, como dizia aquela apresentadora, precisam lidar com as questões que dizem respeito à vida corriqueira e ordinária de todo mundo: enlaces contratuais, problemas com grana e contas a pagar, sucesso profissional, ou seja, os anseios de uma vida normalizada tão anteriormente aspirada.

Enfim, pode ser que a série tome outro rumo, ainda é cedo para definir seu destino. De todo modo, pelo primeiro episódio fica a sensação de que os gays de ‘Looking’ se fossem contemporâneos dos gays de ‘Queer as Folk’ certamente não fariam parte do mesmo grupo.

Continuarei assistindo para acompanhar o desdobramento da história e, em especial, para ver o que será mostrado do quarto protagonista da trama: a própria cidade de São Francisco, que já foi palco de inúmeras lutas do movimento LGBT americano e que, na série, parece esquecer o passado e viver hoje a máxima de que tudo foi apenas “muito barulho por nada”. Como a peça de Shakespeare, isso poderia ser uma comédia (como a HBO tem vendido a série) se não fosse, na real, pura tragédia. Como foi também uma tragédia a morte de Kaique, aqui no Brasil.

Jamil Cabral Sierra.
Jamil Cabral Sierra.

Autor

Jamil Cabral Sierra é professor da UFPR, pesquisador na área de Gênero e Diversidade Sexual e, como não canto, não danço, não atuo, não toco nenhum instrumento, não pinto… nem bordo (só às vezes), não desenho e não esculpo, resta apenas inventar-me na/pela escrita. Uso os caracteres como arma de guerrilha.