Bissexualidade e pansexualidade: distorções, disputas e invisibilidade

Texto de J. Oliveira.

Em entrevista recente, o ator Marcello Antony, que interpretou um personagem bissexual na novela ‘Amor à Vida’, afirmou: Não existe bissexual. E gerou revolta por conta do comentário bifóbico:

“No meu entendimento, todo bissexual no fundo é homossexual. Pode existir o cara que transou com uma mulher e depois se descobre gay. No fundo, a tara mesmo é com a coisa homossexual. Tem o bissexual que o cara consegue transar com mulher, mas se botar mesmo no orgasmo, ele goza mesmo com um parceiro, não é com uma mulher”, declarou. E disse ainda: “A Ana Carolina fala que é bissexual, mas ela gosta é de mulher”.

Niko (Thiago Fragoso) e Eron (Marcelo Anthony). Personagem de Anthony é um bissexual casado com um homem. Foto: TV Globo/Divulgação.
Niko (Thiago Fragoso) e Eron (Marcelo Anthony). Personagem de Anthony é um bissexual casado com um homem. Foto: TV Globo/Divulgação.

Além de, nestes comentários,  restringir a orientação sexual à prática do sexo ignorando as demandas afetivas relacionadas, ainda invalidou as necessidades de todo um grupo de homens e mulheres. Podia estar contribuindo para a visibilização da bissexualidade trazendo o debate sobre seu personagem, mas fez o contrário. E, infelizmente, esse tipo de declaração não é novidade para quem sofre com a bifobia.

A invisibilização, a fetichização, a invalidação de demandas e sentimentos, a prisão dos estereótipos, entre outros tipos de preconceito e a discriminação fazem parte da rotina das pessoas bissexuais, que sofrem tanto por atitudes discriminatórias de pessoas homossexuais, quanto heterossexuais. A bissexualidade muitas vezes é vista como inválida, imoral ou irrelevante.

Além de afirmarem que a bissexualidade não passa de modinha, de uma fase ou de confusão sobre os próprios desejos/sentimentos, a mulher bissexual ainda sofre com o machismo e a lesbofobia.

“Além dos fatores de estresse que atingem minorias como as lésbicas, mulheres bissexuais podem enfrentar outras formas de estresse que podem ser associadas a carência no acesso a saúde, falta de apoio por parte das comunidades gay e lésbica, bem como a comunidade em geral. Grandes centros urbanos são caracterizados por terem comunidades homossexuais bem organizadas e, as mulheres bissexuais em tais ambientes pode se sentir ainda mais isoladas, por não terem acesso a uma comunidade definida “. Referência: Bisexual Invisibility: Impacts and Recommendations.

Isso tudo dificulta bastante o processo de autodescoberta e a tentativa de sair do armário. Pois vemos nossa sexualidade sendo questionada em todos os lugares e em qualquer momento. E estes questionamentos perduram limitando nossos espaços e convivências durante toda nossa vida.

Além disso, outros grupos oprimidos (pessoas negras, trans*, com necessidades especiais, pobres, etc.)  não costumam  encontrar espaços em que todas as suas necessidades sejam levadas em conta. Então, sempre acabam sofrendo algum tipo de discriminação dependendo do espaço que frequentem. Especialmente a sexualidade das pessoas trans* é envolta de profunda discriminação e preconceito. Muita gente confunde identidade de gênero com orientação sexual e não entende que independente do gênero que a pessoa se identifica ela pode se atrair por esse mesmo gênero, ou outro ou mesmo pelos dois.

As pessoas podem ainda se relacionar com quem não se identifica com a binaridade de gênero e podem ser não-binárias , agêneras, ou transitar entre os genêros (entre outras identidades/denominações) e essas pessoas têm também suas próprias demandas.

Quanto a  isso, existe um debate amplo com relação ao  termo bissexualidade. O  questionamento, ainda sem consenso,  seria se este termo não poderia acabar excluindo estas identidades não-binárias. O termo pansexual poderia ser utilizado de forma mais abrangente. Mas, alguns entendem a bissexualidade como um termo guarda-chuva (e mais popular) que pode abranger outros tipos de orientação sexual.

'O guarda-chuva bisexual'. Imagem de Shiri Eisner do http://bidyke.tumblr.com/ (Clique na imagem para vê-la maior).
‘O guarda-chuva bissexual’. Imagem de Shiri Eisner do http://bidyke.tumblr.com/ (Clique na imagem para vê-la maior).

Outro problema, é que o Brasil e diversos outros países sofrem com a falta de políticas públicas neste sentido. Pois, existe pouca ou nenhuma informação sobre os índices relacionados as pessoas bissexuais em qualquer área, o que acaba gerando barreiras relacionadas, por exemplo, ao tratamento e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Hoje, a maior parte das políticas ignora as demandas das lésbicas e engloba apenas a possibilidade de doenças serem transmitidas em relações heterossexuais e cissexuais.

Nesse sentido, o comitê consultivo LGBT da comissão de direitos humanos de São Francisco criou o documento: Bisexual Invisibility: Impacts and Recommendations (Invisibilidade Bissexual: Impactos e Recomendações); que tem algumas estatísticas sobre a bissexualidade na cidade, com muitos dados que certamente podem ser aplicados globalmente, além de recomendações sobre como tratar a invisibilidade e relatos que mostram como a discriminação funciona para este grupo.

Dentre os levantamentos, alguns dados relacionados a invisibilidade chamam bastante atenção:

    • O fato de bissexuais experimentarem maiores disparidades de saúde do que a população em geral, incluindo uma maior probabilidade de sofrer de depressão e outros transtornos de humor ou ansiedade;
    • Bissexuais apresentam taxas mais elevadas de hipertensão, problemas de saúde física e abuso de tabaco e alcool do que os heterossexuais ou lésbicas/gays;
    • Muitos, se não a maioria, de bissexuais não se assumem aos prestadores de cuidados de saúde. Desta forma, estão recebendo informações incompletas (por exemplo, sobre práticas sexuais mais seguras);
    • A maioria dos programas de prevenção ao HIV e DSTs não tratam adequadamente as necessidades de saúde dos bissexuais, muito menos aqueles que têm relações sexuais com homens e mulheres, mas não se identificam como bissexual;
    • Mulheres bissexuais em relações com parceiros monossexuais ter um aumento da taxa de violência doméstica em comparação com as mulheres em outras categorias demográficas.

Além  disso, há várias formas de discriminação voltadas às pessoas bissexuais:

    • Assumir que todas as pessoas que você encontra são heterossexuais ou homossexuais;
    • Entender e defender que a identidade bissexual é para pessoas jovens, porque você se identificou “daquela forma” antes de descobrir a sua “real” identidade lésbica/gay/heterossexual;
    • Automaticamente assumir que uniões românticas de duas mulheres são lésbicas, ou de dois homens são gays, ou de um homem e uma mulher  são heterossexuais;
    • Esperar que uma pessoa bissexual se identifique como gay ou lésbica sempre que formar um casal com o “mesmo” sexo/gênero;
    • Esperar que uma pessoa bissexual se identifique como heterossexual sempre que formar um casal com o sexo/gênero “oposto”;
    • Acreditar que são os homens bissexuais que transmitem HIV/AIDS para pessoas heterossexuais;
    • Acreditar que são as mulheres bissexuais  que transmitem HIV/AIDS para lésbicas;
    • Achar que pessoas bissexuais ainda não se decidiram sobre sua sexualidade;
    • Recusar-se a aceitar a autoidentificação de alguém como bissexual, caso a pessoa não tenha feito sexo com homens e mulheres;
    • Esperar que pessoas bissexuais procurem serviços, informações e educação em locais heterossexuais para o seu “lado heterossexual” e depois procurem locais gays e/ou lésbicos para o seu “lado homossexual”;
    • Acreditar que bissexuais simplesmente querem ter tudo ao mesmo tempo;
    • Assumir que uma pessoa bissexual teria interesse em satisfazer totalmente suas fantasias sexuais ou curiosidades;
    • Acreditar que pessoas bissexuais apenas têm relacionamentos sérios com parceiros do sexo/gênero “oposto”;
    • Ser gay ou lésbica e perguntar aos seus amigos bissexuais sobre seus parceiros ou com quem eles estão saindo apenas quando esta pessoa é do “mesmo” sexo/gênero;
    • Acreditar que bissexuais, se tivessem escolha, prefeririam estar em uma relação com o sexo/gênero “oposto” para receber os benefícios sociais de um relacionamento “heterossexual”;
    • Acreditar que bissexuais desejariam “passar” como qualquer outra coisa que não bissexuais;
    • Acreditar que bissexuais estão confusos a respeito de suas sexualidades;
    • Sentir que você não pode confiar em um bissexual porque eles não são realmente gays ou lésbicas, ou não são realmente heterossexuais;
    • Recusar-se a usar a palavra “bissexual” na mídia quando referir-se a pessoas atraídas por mais de um gênero, substituindo por termos criados, como “meio gay”;
    • Usar os termos “fase”, ou “estado”, ou “confuso”, ou “em cima do muro”,  ou “ainda não saiu do armario” para se referir a sexualidade de pessoas bissexuais, acusando-as de ainda não terem se decidido;
    • Assumir que bissexuais são incapazes de se relacionarem monogamicamente;
    • Sentir que pessoas bissexuais são sinceras e agressivas demais com relação à sua visibilidade e seus direitos;
    • Ver uma pessoa bissexual e automaticamente pensar em sua sexualidade, ao invés de vê-la como uma pessoa inteira, completa;
    • Não confrontar um comentário ou piada bifóbica por medo de ser identificado como bissexual;
    • Acreditar que “bissexual” significa “disponível”;
    • Acreditar que bissexuais terão todos seus direitos garantidos quando lésbicas e gays conquistarem os seus;
    • Esperar que ativistas e grupos bissexuais devam minimizar questões bissexuais (como HIV/AIDS, violência, direitos civis básicos, serviço militar, casamento igualitário, custódia de crianças, adoção, etc.) e priorizar a visibilidade de questões lésbicas e/ou gays;
    • Evitar mencionar para os amigos que está envolvido com uma pessoa bissexual ou trabalhando em um grupo bissexual por medo de que pensem que você é bissexual.

Ao contrário do que se ouve em muitos espaços, as pessoas bissexuais não tem menos demandas  na luta LGBT ou sofrem menos preconceito que as pessoas homossexuais.  O que os poucos  estudos sobre o assunto apontam é que existem demandas especificas (e às vezes mais graves) que precisam ser atendidas e tem sido invisibilizadas.

Textos (em inglês) recomendados:

[+] Biphoria – Bisexuality & Mental Health (Bissexualidade e Saúde Mental).

[+] Way beyond the binary ( O caminho além do binário).

[+] Stuff pansexual need to know (Coisas que pansexuais devem saber).