Texto de Bia Cardoso.
As acusações de abuso sexual contra o diretor norte-americano Woody Allen estiveram no centro das manchetes essa semana. No domingo, foi publicada uma carta de Dylan Farrow com sua versão sobre o caso.

Os tribunais e pequenas inquisições de quintal proliferam seus vereditos. Ora deslegitimando o relato da vítima, ora culpando Mia Farrow, ora jogando na fogueira toda a obra do cineasta. A sanha pela verdade absoluta leva as pessoas a proferirem as mais diferentes sentenças. Há até quem afirme que é um caso de transferência de neurose e alienação parental. Freud ficaria orgulhoso de ver tantos psicanalistas formando-se por meio de comentários em redes sociais.
Não temos absolutamente nada a ver com a vida dessas pessoas, não sabemos o que passaram nesses últimos 22 anos, mas nos sentimos no direito de julgá-las, de escrever textos detalhando cada informação que aparece sobre o caso. Não existe justiça nos tribunais de quintal da internet, apenas as torcidas organizadas em busca da verdade. Porém, há várias verdades que as pessoas não querem comentar, porque inclui olhar para si mesmas. O abuso sexual de crianças, infelizmente, é um crime comum, mas ninguém parece se perguntar o que nós, como sociedade, podemos fazer para mudar essa situação.
Nunca faz bem para a compreensão de problemas complexos dividir o mundo entre bons e maus, bandidos e mocinhos, monstros e homens. A vida fica supostamente mais simples, mas é uma simplicidade falsa, já que nada se resolve se não encaramos a humanidade daquele que nos provoca horror. O fato é que o abuso sexual está sempre muito mais perto do que gostaríamos. E, quando paramos para pensar com honestidade, em geral conhecemos alguém próximo que foi abusado ou abusou. E muitas vezes nós também silenciamos. Referência: Pedófilo é gente? Por Eliane Brum.
Minha proposta em casos como o de Woody Allen é: não façamos nada. Nem defende, nem acusa. Não deslegitima a vítima, nem lincha o agressor. Quem determina sentenças são os órgãos jurídicos, para isso os criamos. Se acreditamos realmente que os Direitos Humanos e as instituições jurídicas são o caminho, não somos nós quem temos que buscar a verdade, analisar os relacionamentos de Woody Allen e Mia Farrow ou chegar a conclusões. Muito menos alimentar o desejo da mídia por fofocas. Porém, como sociedade, sempre podemos fazer muito e, é importantíssimo dar voz às vítimas e lutar para que a justiça penal funcione. Ninguém está dizendo que isso é simples. Sabemos que há muitos fatores que afetam os meandros jurídicos.
Repita o mantra: nunca deslegitime a vítima
O que Mia Farrow, Ronan e Dylan querem ao reacender as acusações contra Woody Allen? Não nos interessa. Eles viveram essa situação e estão elaborando a sua maneira. Não importa nesse caso se houve abuso ou não. Se alguém está querendo holofotes ou não. Woody Allen pode muito bem processar essas pessoas por calúnia e mais uma vez digo: não temos nada a ver com isso. Como as pessoas elaboram essas questões é um problema delas.
Mas Dylan começa seu texto colocando no colo das pessoas a culpa por gostarmos dos filmes de Allen? Sim. E não nos cabe questionar porque ela faz isso. Eu, provavelmente, odiaria um mundo que idolatrasse meu abusador. Dylan Farrow só conseguiu falar publicamente sobre o assunto agora, adulta. Abrir espaço para sua voz é importante e isso não significa que essa será a palavra final, mas sim que essa é a maneira que ela encontrou no momento para elaborar essas questões. Então, vamos respeitá-la. Woody Allen é adulto, pode se defender sem precisar que seus fãs façam isso por ele e também vai elaborar esse episódio de acordo com suas possibilidades.
Mas agora não posso mais gostar dos filmes de Woody Allen? Aí depende de você, mas vamos combinar que essa conversa não é sobre você, o que você quer ou não, mas sim como a sociedade lida com casos de abuso e violência sexual, especialmente contra crianças, especialmente contra meninas.
As primeiras questões talvez sejam: por que a sociedade minimiza casos de abuso? Por que não queremos acreditar que pessoas geniais ou que admiramos são capazes de coisas horríveis? Por que é mais fácil deslegitimar a vítima criança, questionar a sanidade da mãe ou acusar essas pessoas de estarem querendo apenas atenção, fama ou dinheiro? De quem são as vozes que mais ganham credibilidade em casos de abuso sexual?
Nosso maior problema: a vingança e a justiça
Acredito que nosso maior problema seja não cruzar as fronteiras que separam a vingança da justiça. Porque, especialmente em casos de abuso sexual, a vida das vítimas torna-se um enorme buraco negro. É claro que há exceções, mas é comum as pessoas conhecerem casos como o de Dylan. Não estou falando de perdão e nem mesmo acho que a vítima tem que perdoar ou esquecer. Minhas questões referem-se ao que nós, que fazemos parte de uma sociedade que alimenta diariamente a cultura do estupro, podemos fazer.
Esses dias pensei em outro caso, a acusação do estupro de duas adolescentes pelos integrantes da banda New Hit. Não consigo nem imaginar o quanto a vida dessas duas adolescentes foi afetada. Hoje, você não apenas sofre consequências na escola, no emprego, na família, na cidade, mas também via internet. Porque as pessoas descobrem seus contatos e te perseguem. Porque defender um ídolo é importantíssimo, porque a cultura do estupro sempre acha que as vítimas devem ter feito algo para provocar e agora só querem prejudicar os jovens rapazes.
Essa semana saiu a notícia de que integrantes da banda New Hit, que foram indiciados, estão trabalhando com a banda Psirico em shows. O processo está correndo em segredo de justiça, as últimas notícias são de setembro de 2013. Vamos proibí-los de trabalhar? Deveriam estar presos? Vamos levar faixas escrito ‘ESTUPRADOR’ para a frente dos trios elétricos em que estiverem no carnaval? São perguntas que me faço.
Acho importante estarmos nas portas das audiências chamando atenção para os inúmeros casos de estupro no Brasil que não recebem nenhum tipo de punição. No caso do New Hit, nove acusados chegaram a ficar presos por 38 dias em 2012. Um dia após deixarem o Complexo Penal de Feira de Santana já havia um show marcado, enquanto as duas adolescentes recebiam ameaças de morte e eram encaminhadas ao Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM). Talvez uma manifestação durante o carnaval seja uma boa ideia para chamar atenção para o caso.
Sei que em grande parte meu desejo de vê-los presos, sabendo como é a situação carcerária brasileira, é que eles sejam enviados para um inferno similar ao que as duas adolescentes viveram. Esse é nosso grande dilema: há algo que poderá acabar com o sofrimento das vítimas? O punitivismo e as cadeias tem resolvido nossos dilemas sociais?
Sempre que falamos sobre violência, especialmente contra a mulher, é visível que a vida da vítima é destroçada. Geralmente é a mulher agredida quem tem que sair de casa, largar o emprego, abandonar a escola e a convivência com parentes e amigos. Fica impossível sair nas ruas. O que podemos fazer para solucionar isso?
Nossa justiça é lenta e beneficia quem tem dinheiro para contratar bons advogados, que podem arrastar processos por anos. É a mesma justiça que tem como base o machismo presente na sociedade, que entrega aos homens o benefício da dúvida. Por isso, há muita gente que não acredita mais na justiça penal e propõe caçar estupradores.
Racionalmente, estou no campo dos Direitos Humanos, onde não há Lei de Talião, mas sim a proposta de não se igualar aos atos do agressor ou abusador. E aí não há solução mágica para a vítima. Ela terá que elaborar suas questões. O que podemos fazer é lutar para que ela seja ouvida, respeitada e que tenha acesso gratuito a uma rede de apoio e serviços que podem ser fundamentais para sua qualidade de vida. É pouco perto do inferno que viveu? Com certeza. Mas repito, aí está nosso dilema e não há muitas respostas no momento.
Questione as relações de poder

Além disso, devemos sempre questionar nossas relações de poder. Seja na sociedade ou em microcosmos como a família. Há os estupradores e abusadores, mas há também nós, que muitas vezes somos coniventes com tipos específicos de violência. São esses elementos culturais que contribuem para a concretização no imaginário de aspectos como a lascividade da mulher negra, o fetichismo da mulher trans*, a negação da sexualidade lésbica e até mesmo o silenciamento das crianças.
No caso da banda New Hit há relatos de que seguranças e empresários sabiam o que estava ocorrendo dentro do ônibus e foram omissos. Quantos de nós também fomos ao ver algum amigo levando uma conhecida visivelmente alcoolizada para um quarto numa festa? Quais os mecanismos sociais que levam um jovem músico a achar correto abusar sexualmente de uma fã? Não são as roupas, não é a sexualidade precoce das crianças, não são apenas os programas televisivos. Nossa sociedade autoriza o estupro e o abuso sexual ao minimizá-lo, ao deslegitimar as vítimas, ao permitir que a mídia faça um circo em cima da dor das pessoas para o deleite de nossa curiosidade.
Nesses dias, muitos lembraram também de outro diretor: Roman Polanski, que foi condenado por abuso sexual e fugiu. Não podemos negar que Woody Allen e Polanski se beneficiam da mesma estrutura judiciária que favorece assassinos confessos como Pimenta das Neves. Os jogos vorazes jurídicos tem suas regras internas, que refletem nossas desigualdades sociais e contribuem para perpetuar esse sentimento de injustiça latente em nós.
Por isso, insisto: o que podemos fazer para que casos de abuso sexual não ocorram? Essa deve ser nossa principal pergunta ao nos depararmos com um caso como o de Dylan Farrow.