Texto de Ana Rüsche.
Hoje o papo é de bar. Desculpe, é o hábito. Podia até escrever algo mui sisudo sobre as representações violentas da mulher executadas pela cultura que envolve o consumo de cerveja, mas creio que a forma não é a adequada. Ninguém resiste a papo furado. Aí lembrei de começar pela Jeannie é um Gênio, essas bobageiras do século passado. Se não temos metáforas cultas, vamos mesmo de patáfora: o assunto hoje é mulheres engarrafadas.

A Jeannie é um gênio, educadora sentimental de tantos lares dos anos 60 aos 80. Loira, penteada, corpo escultural, tinha lá o seu lado arrojado — teve que filmar com massinha no umbigo para evitar escândalo. Na trama, embora tenha sido libertada pelo amo no primeiro capítulo e fosse a toda-poderosa, queria mesmo ter sua idolatria incondicional ao Cap. Nelson realizada, resumindo-se a ser bastante ingênua, cômica. Engarrafada.
Sim, eu também adoro a musiquinha da abertura. Até já me fantasiei de Jeannie numa época pré-instagram. A questão é: e se eu quiser utilizar os poderes de gênia a meu próprio favor ou a favor de minhas próprias convicções? Hum, creio que a Jeannie instantaneamente teria sua carteirinha de maga cassada.
Falar de mulheres e da cultura que envolve o mercado de cerveja é um pouco por aí. Difícil não lembrar rápido de uma propaganda ou campanha que não trate a mulher como a engarrafadinha, pronta a ceder aos desígnios do primeiro amo bêbado que surgir tropeçando. E, pobre amo, relegado ao papel único de machão grosseiro eterno. Ama, nem pensar! Tudo nas caixinhas da heteronormatividade, organizadinhas. É uma cultura que afirma e reafirma que a mulher deve ficar ali naquele lugarzinho de prontidão à obediência de corpo e alma ao amo: alegre, mas não muito alcoolizada; sorrindo, mas para somente para seu Homem, e assim vamos ladeira abaixo…
Encontrei alguns textos mais focados que falam do assunto. Um texto assertivo da Luma: Reflexões sobre Feminismo e Cerveja: Nós podemos!. O artigo acadêmico ‘A representação da mulher na mídia: um olhar feminista sobre as propagandas de cerveja’ da Sabrina Uzêda da Cruz (UFBA). O texto da Tassia Hallais: Sobre cervejas, detergentes e desodorantes. Outro da Ju Pagul, sobre a decisão de vender ou não a Devassa: Já tomou Tarado? Ou… fermentando a mercantilização dos corpos das mulheres, (a decisão acertada da Ju você já pode imaginar qual é). Sem perdoar ou nem esquecer o racismo da propaganda da Brasil Kirin para a mesma marca, como aponta Soraya Barreto no texto: A estereotipia da cegueira: o caso ‘Devassa Dark Ale’. Mil vezes a Brew Dog que ironizou a macheza das leis “anti-gay” do Putin com a campanha “Hello, my name is Vladimir“.

Como gosto de cervejas artesanais, fico pensando se, pelo menos nesse nichinho de mercado, as coisas podiam ser menos trágicas. Creio que não. Ainda não. É só ler alguns textos e convites que colocam as mulheres na posição de acompanhantes, coadjuvantes, eternas principiantes e donzelas em perigo. Do tipo: olha, ela até bebe! Ou, olha, ela sabe que existem estilos de cerveja! Ou ainda, olha, ela até enfrenta uma IPA! E meus prediletos: podem levar as esposas! Sempre melhor rir e tomar um trago amargo do que chorar.
De qualquer forma, preciso dizer que algumas marcas, bares e eventos de artesanais se preocupam mais com o produto em si do que na perpetuação eterna das propagandas sexistas. Não é ainda uma superação, mas, pelo menos, uma mudança de foco. Tivemos a pouco o Concurso Randy Moscher de Design de Rótulos, por ocasião do Festival de Blumenau, e nos vencedores do rótulo de linha dá para ver bem isso.
Enfim, desejo que nesse tão alardeado “renascimento da cultura das cervejas artesanais”, possa surgir uma cultura de consumo menos sexista, menos engarrafadora de mulheres em rótulos enfadonhos.
Que a Jeannie possa parar de tanto querer agradar o tal do amo (o qual deve ter coisas mais interessantes para fazer do que ser agradado) e vá atrás de seus próprios desejos. Inclusive, a Jeannie pode usar toda sua genialidade para descobrir quais são. Nunca é simples descobrir o que se deseja fora do rótulo. Viver fora da garrafinha pode ser mais complexo, mas, pelo menos, você pode bebericar tua cerveja em paz. Saúde!
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CONVITE
Junto com Mayara Miranda coordeno a Hildegarda, projeto para difundir a cultura das cervejas artesanais, com ênfase à produção brasileira.
Nosso próximo encontro será em São Paulo, no sábado 22/3. Terá a honrosa presença das Lupulinas – Cilmara Bedaque e Vange Leonel. Beberemos e conversaremos. O tema de março? Cerveja e mulheres, o que mais poderia ser?
Quem não puder vir, pode acompanhar pela página no Facebook, no twitter (@cervejashildegarda) ou no blog. Às ordens!