Texto de Bia Cardoso.
Nesta sexta-feira vai ao ar o último capítulo da novela ‘Joia Rara’. Após o fim de ‘Lado a Lado’, possivelmente a novela mais feminista que assisti, mas que infelizmente sofreu com índices baixos de ibope, não achei que a Rede Globo tão cedo iria colocar a emancipação feminina como tema de uma novela. Ainda bem que estava errada e ‘Joia Rara’ foi uma grata surpresa, especialmente numa época em que tivemos diversas mulheres histéricas em ‘Amor à Vida’ e o ciúme usado como justificativa para violência na atual novela das 9, ‘Em Família’.
O primeiro ponto positivo de ‘Joia Rara’ é ser escrita por duas mulheres: Duca Rachid e Thelma Guedes; numa área em que a maioria dos autores são do sexo masculino, especialmente os mais festejados atualmente. ‘Joia Rara’ é uma novela cuja trama se passa nos anos 40, o que justificaria o machismo dos personagens. Porém, está sendo justamente nas novelas de época em que vemos esse machismo ser questionado e problematizado. Isso é ótimo por um lado, meu único receio é que as pessoas fiquem com a impressão de que o machismo e a falta de liberdade das mulheres são assuntos do passado.
A primeira vista, ‘Joia Rara’ parece uma novela bem convencional em que o casal heterossexual principal luta para ficarem juntos, enfrentando vilões e adversidades. Mas, como novela dura meses, para nossa alegria a emancipação feminina e a luta por novas maneiras de ser mulher ganhou destaque na trama, especialmente em sua reta final. Nesse texto, quero falar especificamente das personagens femininas que transgrediram suas trajetórias e terminam a novela bem diferentes do que começaram em termos de liberdade, autonomia e conquistas.

Gaia: uma revolucionária apaixonada.
Gaia (Ana Cecília Costa) tem uma trajetória em dois tempos. Na primeira fase é casada com Toni (Thiago Lacerda). São um casal apaixonado que luta pelos direitos trabalhistas, pelo comunismo e que sonham com um mundo mais justo e igualitário. No dia do nascimento de seu filho, eles são presos. Por ser estrangeira, Gaia é deportada, enviada para um campo de concentração e Toni fica sem ter notícias da esposa e do filho por dez anos. Gaia retorna, com muitas marcas do tempo de violência que passou, mas com a esperança de retomar sua família. Ao chegar no Brasil, descobre que Toni está casado com outra mulher e seu filho desaparecido.
Além de apresentar uma personagem revolucionária, uma mulher que se interessa por política e tem voz ativa no partido dos trabalhadores de ‘Joia Rara’, Gaia também é importante por ser um dos vértices de um triângulo amoroso inovador nas novelas, uma situação em que ninguém tem culpa. Toni só se casou porque acreditava que Gaia estava morta. Hilda, a atual esposa de Toni, se casou acreditando que ele era viúvo, inclusive adotaram o jovem Peteleco. E Gaia, ao voltar, decide retomar sua família, pois foi desse amor que tirou forças para sobreviver durante o período no campo de concentração. Entre idas e vindas, foi um alívio acompanhar um dilema amoroso que não é baseado em: “aquela vadia que roubou meu marido”. Os diálogos são sinceros, as atitudes que os três tomam são adultas, com responsabilidades, tendo que lidar com os pesos de suas escolhas.
[+] Toni surpreende Gaia com um café na cama.
[+] Gaia deixa Hilda assustada ao avisá-la de que vai lutar por Toni.
[+] Gaia promete deixar Toni livre para Hilda.
Iolanda: de esposa comprada a candidata nas eleições.
Iolanda (Carolina Dieckmann), começa a novela como moradora de um cortiço, filha de Venceslau (Reginaldo Faria) um homem viciado em jogo. Ela namora Mundo (Domingos Montagner), militante comunista que trabalha e luta pelos direitos trabalhistas na Fundição Hauser, onde Iolanda trabalha como secretaria. Na primeira virada de destino, o pai aposta Iolanda na mesa de jogo e a perde para Ernest Hauser (José de Abreu), dono da Fundição, que há muito tempo a desejava. Por uma série de razões, Iolanda se vê obrigada a casar com Ernest. Os anos passam, Mundo sai da cadeia, é eleito deputado federal e Iolanda sente-se livre para abandonar o casamento infeliz e lutar por seu amor. Ela e Mundo conseguem se casar e aqui temos uma segunda virada importante, apesar de sonhar em ter filhos, a personagem almeja mais do que ser apenas dona de casa, que era o principal destino das mulheres nos anos 40. Iolanda decide abrir uma creche comunitária e lutar para que as mulheres tenham direito a trabalhar e cuidar de seus filhos. O empreendimento é tão bem sucedido que ela acaba sendo convidada a se candidatar a um cargo político. Ela enfrenta o machismo do marido para provar que é uma mulher livre e que tem direitos.
O mais interessante na trajetória de Iolanda é ver como o desejo de construir algo foi surgindo dentro dela com o tempo. Quando namorava Mundo, ela não parecia ter muito interesse na política, passava muito tempo cuidando do pai. Ao decidir apostar na construção de seus sonhos, Iolanda rompe não apenas a relação de cuidado unilateral que tinha com o pai, mas também não permite que o casamento tão desejado a limite.
[+] Iolanda aceita o pedido de casamento de Ernest para salvar Venceslau.
[+] Ernest se casa com Iolanda e Iolanda abandona Ernest.
[+] Iolanda apresenta seu projeto da creche comunitária para os patrocinadores.
[+] Mundo não apoia Iolanda na decisão de se candidatar e Mundo decide deixar Iolanda.
Outro momento bacana de sua trajetória é que durante o pedido de separação do casamento com Ernest Hauser, Iolanda foi presa e vai a julgamento por adultério. As mulheres da novela, especialmente as que trabalhavam como vedetes no Cabaré Pacheco Leão, as trabalhadoras da Fundição Hauser e moradoras do cortiço organizam uma passeata feminista para pedir sua libertação e o fim de uma lei tão absurda, que atingia apenas as mulheres.
[+] As mulheres se unem e fazem uma manifestação feminista em frente ao fórum.
[+] Manifestantes gritam em frente ao fórum e Hilda e Franz saem do fórum.

Hilda e Laura: mulheres ricas que transformaram seus destinos.
Hilda (Luiza Valdetaro) e Laura (Claudia Ohana) são duas representantes da burguesia dos anos 40. Hilda é a filha caçula de Ernest Hauser, uma moça criada para se casar. Laura é uma mulher de meia idade, com três filhos, casada com o dono de um clube social. Se nada mudasse, um dos filhos de Laura casaria com Hilda e elas seriam nora e sogra. Porém, a paixão e a decepção com os homens de suas famílias as levam a procurar novas rotas. Foram criadas para serem mulheres-bibelôs, para viverem no ambiente doméstico, mas ao sentirem o gosto da liberdade não querem outra vida.
Hilda tem o sonho de ser tornar cantora. Durante muito tempo faz aulas de canto escondida, mas precisa vencer a timidez. Quando conhece Toni se apaixona e decide sair de casa para viver esse amor com o qual o pai não concorda e a deserda..Até mesmo a aparência angelical de Hilda nos leva a crer que ela será uma boa esposa para Toni e nada mais. Porém, com o retorno de Gaia, a esposa de Toni que todos acreditavam estar morta, seu mundo é abalado. Toni fica dividido entre as duas e Hilda sai de casa para focar em sua carreira. A separação de Toni marca um período de grande amadurecimento, em que ela consegue se tornar uma cantora de sucesso. Mesmo com Toni pedindo para retomar o casamento, Hilda não volta imediatamente, pois quer ter certeza de seus sentimentos.
[+] Hilda chora por não conseguir cantar no teste do cabaré e Hilda enfrenta Ernest por Toni.
[+] Hilda abandona Toni e Hilda desabafa com Laura.
[+] Toni pede perdão para Hilda.
Laura enfrenta diversos tropeços em sua rota. Por ser uma mulher mais velha sofre com as exigências sociais, além de ter os filhos como um fator para manter o casamento. A amizade com Iolanda começa a aproximá-la de outra realidade. Demora, mas ela abandona o marido, vai morar numa pensão e inicia um relacionamento com um rapaz bem mais jovem e negro, o professor de desenho, Artur (Ícaro Silva).
[+] Laura diz a Valter que quer o desquite e Laura avisa Valter que vai sair de casa.
[+] Laura se diz disposta a enfrentar preconceitos para ficar com Artur e Laura procura Artur e os dois reatam o namoro.
Outras personagens fortes e decididas.
O elenco feminino adulto de ‘Joia Rara’ trouxe boas surpresas. Primeiro, não há personagens muito boas ou muito más. Há exemplos de mulheres que se envolveram em tramóias por ganância, vingança, interesse ou porque queriam um futuro diferente. A maioria sofre com suas escolhas, algumas são punidas, mas todas tem chance de se redimirem ou não.
Vale destacar as vedetes do Cabaré: Aurora (Mariana Ximenes), Lola (Leticia Spiller), Matilde (Fabiula Nascimento) e Serena Fox (Simone Gutierrez). As duas primeiras representaram muito o mito da velha competição entre mulheres, mas de uma maneira bem divertida, inclusive sempre pareceu que ficariam amigas no final. Matilde e Serena representaram uma amizade forte, com muito apoio e companheirismo. Além disso, Serena é uma personagem gorda com muita autoestima e sex appeal.
Amélia (Bianca Bin), Silvia (Nathalia Dill) e Belmira (Juliana Lohmman) também foram boas personagens. Apesar de ser uma mocinha clássica, Amélia sempre se mostrou uma mulher trabalhadora que não tem medo de autoridade. Silvia, começou como uma vilã vingativa para depois mostrar quem era, inclusive refletindo essa mudança em seu trabalho como designer de joias. Belmira, fez o papel de patinho feio, uma jovem que aprendeu a apreciar suas qualidades físicas, com algum bullying, mas com foco na autoestima.
No campo da representação de minorias, pelas minhas contas tivemos três personagens negras, todas moradoras do cortiço, mas apenas uma com destaque: Lindinha (Cacau Protásio), operária na Fundição Hauser, que tinha uma família negra com pai e irmãos. As outras eram a lavadeira Margarida (Maria Gal) e Fátima (Vilma Melo), empregada doméstica na casa de Valter e Laura, que teve uma cena muito boa retratando a relação entre patrões e empregados.
No geral, fiquei satisfeita com o resultado de ‘Joia Rara’, classifico-a como uma novela feminista. Também tiveram bons personagens masculinos, homens que demonstraram seu machismo, mas souberam reconhecer o quanto isso prejudica suas relações. Acredito ser importante termos personagens femininas que fujam aos padrões das novelas e que representem um desejo de autonomia e liberdade para as mulheres, são esses os sentimentos que as mulheres de ‘Joia Rara’ despertaram em mim.