Quem é meu estuprador?

Texto de Priscilla Konat Zorzi.

Imagina vestir um short porque é verão e tua cidade parece localizada no Saara. Imagina vestir uma blusa com decote porque ela faz tu te sentir bonita. Imagina colocar um vestido que tu ficou um tempão namorando na loja e finalmente conseguiu comprar. Imagina colocar uma saia porque tu vai encontrar uma pessoa que tu gosta e quer te sentir sexy.

Imagina sair na rua sozinha. Ou de carro com as amigas. Ou com o namorado. Pra ir na faculdade. Ir ao trabalho. Ao parque. Numa festa. No cinema. Num happy hour.

Imagina alguém olhar pra ti sem olhar no teu rosto, só olhando pras tuas pernas. Pros teus peitos. Pra tua bunda.

Imagina alguém passar por ti na rua e buzinar. Te chamar de linda. Te chamar de gostosa. Dizer que quer te chupar todinha. E daí pra baixo (e pra dentro).

Imagina alguém pegar na tua bunda sem tua permissão. Rasgar a tua roupa. Te machucar. Te jogar no chão. Segurar tuas mãos. Abrir tuas pernas a força. E fazer o que quiser fazer.

Uma vez. Duas vezes. Uma pessoa. Duas. Três. Quatro. Sei lá.

Estátua: O Rapto das Sabinas, de Giambologna, na Loggia dei Lanzi, em Florença, Itália. Foto de thom no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
Estátua: O Rapto das Sabinas, de Giambologna, na Loggia dei Lanzi, em Florença, Itália. Foto de thom no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Imagina a sensação de ser rasgada ao meio. Imagina a dor. Imagina a humilhação. Imagina a fragilidade. Imagina o desespero. Imagina minutos que duram uma vida. É ser uma coisa, um objeto que só existe ali pro prazer de outra pessoa.

Imagina a pessoa fazer isso rindo. Imagina ela te dizer que no fundo tu quer isso. Que ela sabe que tu quer. Que tu tava provocando ela. Que ela tem suas necessidades. Que tu diz que não, mas na verdade é sim. Que tu é uma puta. Que tu é uma vadia. Que tu é uma coisa.

E não imagina aquela cena de filme pornô, onde todo mundo tá curtindo. Aqui ninguém se importa se tu tá odiando. Se tá doendo. Se teu atacante é feio, mal cheiroso e cheio de doenças. Ou se ele é alguém em quem tu confiava, até esse momento.

Não interessa a tua vontade. As tuas lágrimas. Os teus gritos. A tua dor. Tu é um pedaço de carne, e todo mundo sabe que pedaços de carne não tem sentimentos.

Não interessa se tu sair dessa com uma doença. Com um filho indesejado. Com uma cicatriz emocional que tu vai carregar pra vida toda. Ou se tu não sair dessa, porque depois que o objeto é usado ele pode ser descartado.

E tudo isso foi culpa do short. Da saia. Do vestido. Do decote. De tu ter nascido assim, coisa e carne.

Pra 65% dos brasileiros, bem feito que isso te aconteceu. Tava merecendo. Pra CENTO E TRINTA MILHÕES DE PESSOAS, SÓ NO PAÍS ONDE TU VIVE, isso foi a coisa apropriada a acontecer. A coisa justa. A coisa humana.

Porque pra policial que vai te atender, pro enfermeiro que vai te receber, foi culpa tua. Pro teu vizinho, pra tua avó, pro colega de trabalho, pra caixa do supermercado, foi culpa tua. Meu estuprador é um estuprador de Schrödinger: ele não é um estuprador, mas, ao mesmo tempo, ele é um estuprador. Nenhuma dessas pessoas estavam lá, mas, ao mesmo tempo, todas elas estavam.

E tu? Tá aonde?

Autora

Priscilla Konat Zorzi é psicóloga, professora, escritora, ilustradora e sonhadora convicta. Espero ver o dia em que o feminismo não precise mais do meu empurrãozinho. Mas até lá… Esse texto foi publicado originalmente em seu perfil do Facebook.