Texto de Karollyna Alves.
Pouco antes do Carnaval, me encontrava num dilema. Havia lido todos os livros da estante e precisava de alguma companhia, mas ao mesmo tempo não poderia ser nada muito extenso, pois minha programação era brincar um dia de Carnaval e nos outros estudar para a faculdade.

Foi assim, meio sem querer querendo que “A Invenção das Asas”, romance de Sue Monk Kidd, foi parar nas minhas mãos. Ao ver o título, meu sexto sentido de feminista já me aguçou para a possibilidade do enredo trazer uma conquista de liberdade. Quando li a pequena sinopse: bingo! Era justamente uma história feminista.
A História
O enredo tem como cenário o sul dos Estados Unidos nos anos 1800. É escrito na perspectiva de duas protagonistas parecidas no amor à vida e que, de diferentes maneiras, estão na prisão de suas rotinas. A primeira é Sarah Grimké, a filha de brancos senhores de escravos. A segunda é Hetty “Encrenca” Grimké, uma escrava de 10 anos que foi dada a Sarah, no seu aniversário de 11 anos, para ser sua dama de companhia.
Na curta sinopse da orelha do livro sabe-se que Sarah não é uma “mulher branca igual as outras”. Desde a tenra infância, quando presenciou um escravo sendo brutalmente castigado e, mesmo não sabendo as implicações do que é ser escravo dentro da sua cabecinha infantil, a personagem é duramente marcada pela violência que observou. Após esse episódio, ela é tomada por uma gagueira emocional, para completar uma frase tem que se esforçar e balbuciar enquanto as pessoas ao redor a desprezam por suas dificuldades. Se já não bastasse o problema na fala, Sarah jura que tem “problemas nas ideias”, pois tem convicções que ninguém na sua época conseguiria sequer imaginar: ela acredita que negros e brancos são iguais.
Sarah sonha em se tornar advogada, inspirada pelo pai que é juiz. Ao anunciar sua pretensão, diz ao pai que ela o faria muito orgulhoso por ser a primeira mulher a se tornar advogada. Claro que seus desejos foram sufocados pelos “bons costumes” da época (em 1820 nada era tão simples) e a medida que nos envolvemos com Sarah vamos tomando conhecimento todas as personagens mulheres que a acompanham: mãe, irmã mais velha, irmã mais nova, vizinhas, etc. Encrenca possui a mesma vitalidade de Sarah, o conhecimento no fundo do peito de que o mundo está de cabeça para baixo, de que a vida daquele jeito não é certa, de que ela não faz por merecer as chibatadas e castigos que leva.
Gostei desses dois extremos que o livro relata, há um cuidado de retratá-las como prisioneiras de destinos que elas próprias não escolheram. A certa altura, Encrenca diz a Sarah: “Eu sou presa pelo corpo mas você é presa pela mente”. Esta dicotomia é um dos fatores que me aproximou ainda mais da história, além de todos os desdobramentos que as personagens tem que tomar para ter uma existência com o mínimo de dignidade, correr atrás dos seus desejos e não morrer no meio do caminho. Acompanhamos a jornada das duas ao longo de 35 anos.
[+] Leia um trecho do livro em .pdf.
Amizade e escravidão
A estrutura do livro vai intercalando capítulos, num deles a primeira pessoa é Sarah, no outro é Encrenca. O vocabulário diferente entre uma personagem e outra consegue distinguir bem quem é a voz humilde, cansada, trabalhadora e injustiçada, enquanto a outra é a voz da menina doce, sonhadora, entediada e pressionada pela família.
Embora as duas sejam escravas de sua condição feminina e de suas posições sociais, dentro da sociedade em que vivem, muitas vezes elas dizem a mesma coisa de maneira diferente, o que estabelece uma relação de cumplicidade e aprendizagem grande. Sarah não conseguiria se tornar a pioneira abolicionista que foi sem a convivência com Encrenca. Já Encrenca não teria tanta esperança se não fosse o auxílio de Sarah e o jogo de cintura das duas, para não serem apenas mais duas pessoas agindo e reproduzindo as regras que as impuseram seguir.
Quanto a questão da escravidão, a própria autora reconhece ter sido bastante superficial, especialmente com as torturas empregadas aos escravos. Então, pode ser um começo para quem tem receio em ler livros com temas complexos, mas que podem nos fazer pensar um pouco sobre a questão do racismo.
Comprei o livro porque queria uma literatura mais leve, menos densa. Para quem tem o hábito de ler, mas foge de literatura complexa, com linguagem rebuscada e detalhes das crueldades praticadas, este livro pode ser a chance de conhecer e refletir um pouco sobre a escravidão de negros, liberdade e feminismo. Além de contar a história dessas mulheres que lutaram no passado e que, infelizmente, ficaram lá esquecidas e abandonadas na História escrita pelos homens. Acredito que “A Invenção das Asas” pode ser uma boa introdução para quem ainda está adormecido na luta das mulheres, das raças e dos gêneros. Não é tão difícil fazer paralelos com os dias de hoje, basta lembrar que há um mês atrás Claudia Silva Ferreira foi vítima de tal brutalidade incompatível com a dignidade humana.
Achei tanto a história, como o projeto gráfico do livro muito bonitos. Até chorei ao terminá-lo, não porque seja um drama cheio de enredos mirabolantes coisa e tal, realmente o último capítulo é um pouco fantasioso mas compatível com o que se poderia esperar para quem está aprendendo a voar.
No fim do livro há uma nota da autora dizendo que Sara e Encrenca realmente existiram. Embora nem todas as histórias no livro sejam verdade, é certo que Sarah Grimké pertencia a uma família abastada e era filha de um juiz. Também é verdade que Encrenca era escrava e que foi dada de presente a Sarah. Segundo outros documentos, as duas eram amigas e Sarah havia ensinado Encrenca a ler. No entanto, o pouco que se sabe de Encrenca é que ela faleceu muito jovem e a vida contada no livro depois de sua infância é ficção da autora.
Fiquei surpresa em saber que a autora passava todos os dias em frente a casa que Sarah Grimké e sua irmã, Angelina Grimké, moraram e nem ao menos sabia que um dia elas tinham existido. É aquele velho problema, as mulheres que fizeram história são apagadas da memória mesmo sendo notáveis pessoas públicas. Sarah e Angelina foram muito mais do que meninas que sonhavam em alforriar todos os escravos, elas abandonaram os luxos de sua casa, foram contra a lei do Sul dos Estados Unidos, foram parte das primeiras pessoas a defender não só os direitos dos negros serem iguais, como também das mulheres serem iguais!
Sarah e Angelina se tornaram famosas por seus discursos e cartas aos jornais, onde denunciavam as atrocidades empregadas aos negros naquela sociedade branca que simplesmente escolhia fechar os olhos. É certo que, ainda que elas fossem umas das primeiras a defender a abolição, foram as pioneiras a defender sua própria liberdade de poder falar em público para homens e mulheres, sem distinção de classe ou de cor. Mesmo sendo acusadas de estarem dividindo o público (alguns achavam que elas deviam primeiro resolver os “problemas dos negros”, para depois resolver o “problema das mulheres”, como se tudo não estivesse entrelaçado), elas continuaram a levantar a voz pelas mulheres, pelos negros e negras e, por fim como ainda estamos fazendo, lutando para acabar com as injustiças.
Escritoras brancas e personagens negras
Nunca tinha ouvido falar de Sue Monk Kidd. Descobri que ela também é autora do best-seller “A Vida Secreta das Abelhas”, que também tem como pano de fundo a questão racial nos Estados Unidos. A emancipação feminina também é tema presente nas duas obras.
Atualmente, é comum ver escritoras brancas contando histórias sobre o período escravocrata americano. Além de Sue Monk Kidd, há Kathryn Stockett que escreveu “A Resposta” (a adaptação do livro para o cinema recebeu o título “Histórias Cruzadas”). Uma crítica constante em relação a esses romances é que, apesar de retratarem várias personagens negras, a protagonista geralmente é branca e tem a função de ser a salvadora dessas personagens negras. O ponto de vista branco salvador existe para que as pessoas se identifiquem com alguém que não é o branco malvado que explora os negros. Para que saibamos que a escravidão e o racismo são horríveis, mas há brancos bonzinhos que foram fundamentais para a libertação dos negros.
Isso não significa que os livros são ruins. As histórias contadas são emocionantes, assim como os filmes que foram feitos e até renderam prêmios para as atrizes negras. Porém, como nos alerta Chimamanda Adichie, escritora negra, temos que ter cuidado com os perigos das histórias únicas. E, também precisamos refletir sobre as razões que levam escritoras brancas terem espaço para publicarem essas histórias, enquanto há tão poucas escritoras negras nas listas dos livros mais vendidos.
Referência
A Invenção das Asas. Autora: Sue Monk Kidd. Tradução: Flávia Yacubian. Editora Paralela, 324 páginas. São Paulo, 2014.