Cassandra Rios: a Safo de Perdizes – Entrevista com Hanna Korich

Por Lettícia Leite.

Ano passado, publiquei o texto ‘(In)Visibilidades lésbicas e a literatura’. Era parte de uma blogagem coletiva, mas também do meu interesse em pensar sobre a visibilidade lésbica na cultura. Nesse texto, cito o documentário brasileiro ‘Cassandra Rios: a Safo de Perdizes’ (2013), realizado por Hanna Korich. Para além de diversas questões, o filme também faz eco com uma temática que tratamos recentemente aqui no blog: repressão, mulheres, resistência e ditadura.

Hanna Korich, diretora do documentário "Cassandra Rios: a Safo de Perdizes". Foto: arquivo pessoal com autorização.
Hanna Korich, diretora do documentário “Cassandra Rios: a Safo de Perdizes”. Foto: arquivo pessoal com autorização.

Tomei a iniciativa de propor uma entrevista para falarmos de algumas questões que aparecem no documentário. Hanna Korich é paulistana, advogada e graduada em Comunicação Social com especialização em Rádio/TV pela Faap, fez parte do Conselho de Atenção à Diversidade Sexual do município de São Paulo representando as lésbicas. Em 2008, junto com Laura Bacellar criou a primeira e única editora lésbica da América Latina – Editora Brejeira Malagueta. Escreveu junto com Laura Bacellar e Lúcia Facco o livro “Frente e Verso, visões da lesbianidade”, publicado em 2011. Foi colunista do site Dykerama, apresentadora, produtora e roteirista do programa de TV por Internet “As Brejeiras”. Agradeço enormemente pela disponibilidade de Hanna Korich em me conceder esta entrevista.

1- Hanna, conte-nos um pouco sobre como e quando ocorreu seu encontro com a obra de Cassandra Rios e também sobre o que lhe motivou a realizar este documentário.

Encontrei os livros da Cassandra em sebos no centro em São Paulo. Advogava num escritório na Praça da Sé e por lá existem vários sebos. Anos 90. Passei a ler seus livros e me tornei sua fã. Em 2008, eu, Laura Bacellar e um grupo de mulheres criamos uma editora para lésbicas, aliás a única da América Latina, surgiu assim a Malagueta que agora é Brejeira Malagueta (www.editoramalagueta.com.br). Além de publicar livros começamos a realizar eventos literários voltados para lésbicas, saraus, encontros em São Paulo, outros estados e interior de São Paulo, Minas Gerais. Comecei a falar sobre Cassandra Rios e ler trechos dos seus livros. Fiquei chocada porque a moçada, mulheres até 40 anos não conheciam a autora. Decidi, então fazer o documentário, concorri num edital do ProAc da Secretaria de Cultura de São Paulo em 2012 e ganhei.

2- Foi você mesma que escolheu o título “Cassandra Rios: a Safo de Perdizes”? Como parte dos meus trabalhos de pesquisa se ocuparam do estudo das recepções antigas e modernas de Safo e/ou os fragmentos a ela atribuídos, eu não poderia deixar de perguntar: por que a escolha por evocar a poetisa Safo de Lesbos, cujas composições antecedem a produção literária de Cassandra Rios em 26 séculos?

Sim, fiquei na dúvida entre “Viva Cassandra” ou “Cassandra Rios: a Safo de Perdizes”. Para mim Cassandra Rios, pelo pioneirismo, ousadia, tem a mesma importância que Safo. Foi a primeira escritora brasileira, isso na década de 40! A mostrar a mulher como ser sexual, que sentia desejo, tesão! Isso é de uma coragem inestimável! Além disso, Cassandra foi pioneira em retratar abertamente e sem preconceitos as lésbicas nas letras brasileiras (publicou seu primeiro livros aos 16 anos de idade, bancada pela mãe, uma imigrante espanhola, em 1948!). Só para esclarecer – Perdizes, é um bairro muito antigo de São Paulo, onde nasceu e foi criada a autora.

3- O que você acha que (re)descobriu sobre a trajetória da Cassandra durante o processo de preparação do documentário?

Descobri coisas curiosas, por exemplo, fui vizinha da Cassandra, morando na mesma rua num prédio ao lado durante 11 anos! E fiquei sabendo durante uma conversa com a Liz, sobrinha da autora, que Cassandra era muito namoradeira, terrível mesmo! Arrasava quarteirões com muita educação e gentilezas. A mulherada ficava fascinada com ela, com a sua cultura, ousadia, coragem e fama evidentemente! O mais surpreendente é que numa conversa por telefone com uma das namoradas da Cassandra (que na última hora desistiu de gravar seu depoimento para o filme) descobri que o casal nos anos 80 viajou até a Holanda para casar! A namorada relatou que Cassandra chegou em casa com duas passagens para Amsterdã de presente, havia decidido oficializar a relação das duas que ficaram juntas durante 13 anos. Com certeza era uma mulher a frente do seu tempo! Ficaria muito feliz com os avanços das relações homoafetivas no Brasil. Uma pena mesmo que não estar entre nós!

4- Em outras entrevistas concedidas acerca do documentário, você mencionou que o processo de pesquisa e montagem durou cerca de 1 ano. Qual o balanço “perdas e ganhos” que você faz entre o projeto inicial enviado em resposta ao edital do Programa de Ação cultural do Estado de São Paulo 2012 – Coordenação de Políticas para a Diversidade Sexual, e o que vocês puderam efetivamente realizar com o orçamento e tempo dos quais dispuseram?

Veja bem, não sou cineasta, não tenho a pretensão. Sou advogada e cursei mais tarde outra graduação em Comunicação Social, com especialização em Rádio e TV. Em 2008, como já mencionei, fundei com outras mulheres a Malagueta e trabalho com livros desde então. Vejo a realização deste filme como um ganho! Sempre! A intenção é divulgar a Cassandra Rios e com imagens, porque infelizmente depois de 6 anos trabalhando arduamente na Malagueta, cheguei à conclusão de que apesar de termos no Brasil 9 milhões de lésbicas, elas não se interessam muito pela leitura, compram poucos livros, não se sabe a razão exatamente. Minha esperança é que o filme consiga sensibilizar as sáficas das novas gerações para que saibam a importância da Cassandra Rios. O orçamento ficou bem apertado, o dinheiro do edital não foi suficiente para tudo. Estou legendando o documentário e pagando com o meu dinheiro, fora isso terei que imprimir outros DVDs e pagar também, não é fácil trabalhar com cultura no Brasil!

5- O documentário “4 Minas”, realizado pela Elisa Gargiulo e equipe, contou com este mesmo apoio do governo do Estado de São Paulo, edital de 2011. Quais os trabalhos que você conhece e poderia citar, que foram beneficiados por este mesmo programa?

Conheço os trabalhos do Lufe Steffen, que realizou dois filmes abordando temática LGBTT – “A volta de Paulicéia Desvairada” (longa, 2012) e “São Paulo em Hi Fi” (longa, 2013). [Veja trailler e entrevista com o diretor aqui: http://www.abalo.com.br/hifi/index.htm].

6- O lançamento do documentário ocorreu no final de agosto de 2013. Gostaria de saber, desde então, mais ou menos quantas projeções foram realizadas e em quais estados do Brasil elas ocorreram. Você tem uma estimativa do número de pessoas que já o assistiram? O documentário tem atraído que tipo de público?

Houve um pré-lançamento na Casa das Rosas em São Paulo em agosto de 2013, depois o lançamento oficial em outubro no Cine Livraria Cultura também em São Paulo. Em novembro/13 o filme participou do Festival Mix Brasil da Diversidade em São Paulo, Rio de Janeiro e Campos do Jordão. Ainda em 2013, foi exibido no interior do Rio Grande do Sul, no Centro Cultural de Arroio do Meio (próximo de Porto Alegre). Também no Rio Grande do Sul, em fevereiro de 2014, participou com exibição durante 5 dias da Mostra de Verão de Cinema Brasileiro, no Santander Cultural, com uma sessão comentada espetacular no dia 13/02. Em março, foi exibido no Centro Maria Quitéria em João Pessoa. Agora em abril exibimos no Centro Cultural em Teresina/ Piauí. Em maio será exibido em Fortaleza/Ceará e também na cidade de Rio Grande/RS no VII Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de gênero da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura, com muita honra! O documentário tem atraído gente inteligente e curiosa, com um bom público, não consigo estimar, não fui em todas as exibições.

7- Ainda quanto à recepção do documentário, qual foi sua maior surpresa?

Sou muito comunicativa, converso muito com as pessoas que vão assistir ao filme, principalmente com as mulheres mais velhas. No Centro Cultural Vergueiro onde foi exibido pelo Festival Mix Brasil encontrei algumas sáficas velhotinhas que inclusive conheceram a Cassandra pessoalmente. Expliquei que após a projeção haveria uma conversa com o público etc…. Infelizmente elas não se manifestaram, só ouviram, fiquei frustrada sem saber se gostaram ou não do meu trabalho. As mais jovens fizeram muitas perguntas, trocaram muitas ideias, foi muito gratificante!

8- Vendo o documentário, percebi que você buscou trazer para a tela variadas perspectivas sobre a Cassandra e sua obra e trajetória. Ouvimos a Cassandra contada pelos amigos, pela sobrinha Liz Rios, comentada por diferentes editores, estudiosas e estudiosos de literatura. Tem bastante material ali! Dentre estas falas, chamou-me atenção uma observação feita pela professora da USP, a Dra. Eliane Robert Moraes. Pois ela, apesar de reconhecer a ousadia da Cassadra, seu pioneirismo ao trazer diversos personagens que retratam diversas sexualidades etc., ainda assim acredita que a literatura da nossa “Safo de Perdizes” não é de qualidade notável. Não lhe parece curioso que livros capazes de provocar reações avassaladoras em leitoras e leitores de ontem e de hoje — o que ao meu ver denotaria a força deste ato de escrita —, ainda sejam submetidos/reduzidos a este tipo de critério, em certa medida arbitrário, do que se define como “boa literatura”?

Pois é, a Dra Eliane Robert Moraes, muito inteligente e estudiosa, pertence a “academia”. A maioria dos intelectuais da academia pensa dessa forma. Descobri a Professora nas minhas pesquisas para o filme, numa entrevista que fez com a Cassandra para uma revista feminista dos anos 80 chamada “Mulherio” e, na época, a Eliane e a Sandra Lapeiz escreveram que eram leitoras atentas da autora e que se dedicavam a pesquisar o discurso narrativo erótico. Concluo que a academia notou, mas pouco, a importância da obra da Cassandra. Já o professor e Dr. Rick Santos, que também pertence à academia, escreveu uma tese de doutorado sobre os escritos da Cassandra e tem uma profunda admiração pelos seus livros, não é maravilhoso?! Outro dia mesmo recebi um email do Rick relatando que participou de um evento de literatura brasileira contemporânea de D. C. nos EUA, falando sobre Cassandra Rios. Para mim é uma discussão secundária e respondo pra você com as palavras da própria Cassandra Rios na sua última entrevista, quando perguntaram qual é o seu lugar na literatura brasileira? – Ela responde: “Na mão do leitor! Quero ser lida, mesmo que achem uma droga”.

9- Você acha que o fato de Cassandra Rios ter vivido uma sexualidade marginalizada acabou trazendo alguma originalidade à maneira em que ela opta por abordar as sexualidades em seus livros ?

Também, mas não é só isso, considerando que a Cassandra fez muito sucesso também com os heterossexuais. Ela dizia que o escritor não tem sexo e o que importava é a força do estilo. Por outro lado, considero seu estilo vigoroso, audacioso. A verdade é que inegavelmente Cassandra rompeu tabus numa sociedade muito conservadora e hipócrita como Nelson Rodrigues fez na mesma época. E que eu saiba ele não era gay, muito pelo contrário!

10- Acabamos de completar 50 anos de golpe militar. Tem-se aproveitado o momento para relembrar numerosos esquecimentos. Dentre eles, as trajetórias de mulheres militantes, assim como a peculiaridade das práticas de torturas às quais algumas dentre elas foram submetidas. Cassandra Rios, devido ao seu militantismo literário e a sua opção sexual, também sofreu sérias consequências enquanto mulher, lésbica e escritora. Você acha que, apesar de vivermos hoje num contexto histórico bastante distinto, o fato de a maior parte da sua obra ainda não ser reeditada ainda diz muito sobre a moral e as censuras vigentes?

Primeiro, vamos retificar para ORIENTAÇÃO SEXUAL e não opção! Rs. A obra da Cassandra não foi reeditada porque os editores brasileiros não tem interesse nos livros da autora e não consideram que tenham apelo no mercado brasileiro, ou seja, não tem perspectivas de vendas. Além das eventuais dificuldades com os herdeiros. A questão moral e da censura atualmente não interfere em absolutamente nada com isso, mesmo porque, a própria Malagueta publica livros para lésbicas com conteúdo erótico e de boa qualidade, além de outras publicações de autores estrangeiros e brasileiros das mais variadas editoras que abordam a homossexualidade abertamente e sem qualquer censura. O que pega mesmo é o lado comercial!

Documentário “Cassandra Rios: a Safo de Perdizes”

Sinopse: Cassandra Rios foi uma escritora polêmica que ficou conhecida pela ousadia de suas obras consideradas por alguns pornográficas por outros irresistíveis. Na década de 1970 foi das autoras brasileiras que mais vendeu livros e também uma das mais perseguidas pela ditadura militar. Pode-se dizer que foi a primeira escritora brasileira a mostrar a mulher como um ser sexual e, mais ainda, a primeira a ter coragem de retratar as homossexuais. Nesse vídeo, amigos, estudiosos, familiares, leitores, colegas falam de Cassandra Rios e prestam tributo à sua coragem e pioneirismo.

Idealização e direção: Hanna Korich
Roteiro: Laura Bacellar e Hanna Korich
Câmera e edição de imagem: Cadu Silva
Iluminação e captação de som: Cadu Silva
Assistência de câmera e iluminação: Mari Cavalcante
Edição de texto: Hanna Korich
Produção: Laura Bacellar e Hanna Korich
Locuções: Nanda Cury e Hanna Korich
Edição de som: Thiago Schulze
Colorização: Igor Yano Vieira
Assessoria de imprensa: Paco Llistó & Midiatix Mídias Sociais
Composição, voz, guitarra e direção musical: Laura Finocchiaro
Piano, sanfona e arranjos: Vicente Falek
Canções originais baseadas em poemas de Cassandra Rios
Título: Cassandra Rios – A Safo de Perdizes, Brasil, 2013, colorido, 62min
Classificação: recomendado para maiores de 16 anos.

+ Entrevistas com Hanna Korich

[+] Blogay – Documentário retrata Cassandra Rios, escritora lésbica perseguida pela ditadura.

[+] Lez Femme – Confira entrevista de Hanna Korich, diretora do documentário sobre Cassandra Rios.

[+] Cinetoscópio – Hanna Korich, entrevista.

[+] 24 Quadros – Entrevista Hanna Korich e Laura Bacellar.