Marcha das Vadias de Curitiba – 2014

No sábado, dia 05 de julho, aconteceu a 4° Marcha das Vadias de Curitiba. Uma Marcha subversiva e comprometida com o combate de todas as formas de preconceito e discriminação, que não acredita na exclusão e valoriza toda forma de viver.

Publicamos aqui textos que refletem essa atitude combativa e comprometida com o fim da violência, na luta por uma sociedade mais justa, igualitária e cheia de diversidade.

Por Lara Fernanda Ritter:

Não por amor mas pela dor
Hoje reconheci teu grito na esquina
Ouvi teu grito no mato em poço redondo em 28 de julho de 1938
Reconheci teu grito em 16 de março de 2014 no Morro da Congonha
Ouvi teu grito dentro de casa e dentro da escola
Cansada do trabalho
Exausta do marido, do pai, do irmão e do sexo forçado
Ouvi teu grito no espelho
No pânico de não ser magra, de ter a cor negra como o barro, de ter cabelo duro e ruim
No pânico de não ser modelo, Maria atriz, rica com joias ou com pão
Das rugas crescendo e do povo dizendo que só resta alma honesta e que beleza não tem mais não
Em crise do filho enlouquecido pela vasta humilhação
Da Mãe batida e abatida a marteladas pelo chão
Ouvi teu grito no motel arrastada pela carona que prometeu ajuda e te deu uma facada no coração
Ouvi teu grito no bosque na noite fria que deixada pela Mãe só enxergou a escuridão
Espancada pela avó que foi torturada pelo avô e abandonada pelo pai
Humilhada pelo tio que sem remorso temia que não teria boa educação
Ouvi teu grito na igreja, pedindo perdão, buscando a consideração
Enganada pelo pastor, estuprada, violentada, caída nem a fé sobrou
Eu vi teu grito de dor
E o meu grito de espera eterna
No carro, na casa, na padaria
Alucinada, assediada e doente
Meu grito agora é não
Meu grito cansado doido e trêmulo ainda é não
Meu grito fraco e forte por dentro ainda é não
Não para vida que não me deixa passar
Não pelo fim
Pelo fim da nossa morte carnal ou moral
Real ou do imaginário
Físico ou da esperança que nunca chega de chegar
Pelo começo da guerra e pelo fim da paz
Que nunca nos satisfez e nem nos satisfaz
Pela paz que morre no teu grito que nunca passou das paredes do marido
O nosso grito agora não tem fim e sem demora escoa feito o liquido
Que limpa nosso corpo da injúria
E nós cheias de fúria
Juramos que nossa voz não tem fim
Que nosso corpo é nosso jardim
E que por todas as iyabas nós resistiremos até o fim.

Marcha das Vadias Curitiba/PR - 2014. Foto de Renata J. Sembay no Facebook.
Marcha das Vadias Curitiba/PR – 2014. Foto de Renata J. Sembay no Facebook.

Por Marjory Rocka:

Ela era imã
trabalhadora
era tia era filha e podia ate ser vó
ela era negra
a carne mais barata do mercado
levou um tiro enganado
morreu esfolada no asfalto, no chão
arrastada ainda viva pelo camburão
Ela era irmã
trabalhadora
era tia era filha vizinha e podia ate ser vó
ela era pobre
mulher
acusada de bruxaria
foi linchada
chutada como judas malhado
por causa de um retrato falado
Ela era vida
agredida pra todo mundo ver e filmar
como dizia minha vó não é migué
algemada e alvejada pelo namorado gambé
Ela era Cláudia Silva Ferreira
mulher negra, inocente
que morreu, segundo a policia, por acidente.
Ela era Fabiane Maria de Jesus
pobre, inocente
outro acidente.
Ela era Paloma
mais uma inocente
vítima de um incidente.
Elas eram vidas.
Elas são vida
Trabalhadoras, mães, tias, sobrinhas, filhas, vizinhas e até avós
A minha
A sua
Acidentes
Incidentes.
Vidas perdidas e abusadas diariamente
indigentes
Vítimas do ódio
ódio que mata
a murros, chutes, tiros ou faca
nascidas para satisfazer desejos
em uma busca rápida
eu vejo
estatísticas de violência doméstica
estatísticas de violência obstétrica
estatísticas de abuso sexual
números de censo anual
números, não gente
e quem é gente nessa sociedade doente?
Números de boletim de ocorrência
Números da violência
em uma busca rápida
é só googlar
para encontrar
Maria Elza Portes, assassinada a facadas dentro de casa por tentar terminar
o relacionamento com o companheiro no Bairro Alto
Hérica Patrícia Dias, morta a pauladas no bairro Cajuru
Rosenilda Ferreira, assassinada a facadas pelo namorado por recusar um ovo
de páscoa no Parolin
Mas não precisa nem pesquisar para saber
O que fez Claudia morrer
O que fez Fabiane ser linchada
O que fez Paloma ser assassinada
Nós sabemos que tudo que o patriarcado quer
É exterminar a mulher
Pelas mulheres que viraram meros números em estatísticas de violência: EU RESISTO!
E para que outras mulheres não sejam mais números: EU INSISTO!
Contra a violência patriarcal e a supremacia machista: EU PERSISTO!
Sou mulher, negra, pobre, lésbica, filha, prima, irmã , sobrinha, vizinha
tia, quem sabe um dia mãe e até vó
Machista, contra sua vontade: Eu EXISTO e VIVO!
Podem nos chamar de intransigentes
Na luta contra a supremacia machista estamos todas PRESENTES!

Marcha das Vadias Curitiba/PR - 2014. Foto de Lari Schip no Facebook.
Marcha das Vadias Curitiba/PR – 2014. Foto de Lari Schip no Facebook.

Por Mika Urbanek:

Para minhas colegas, amigas, primas, tias, irmãs, mulheres… não falem das minhas tetas sem antes fechar os olhos e lembrarem de quantas vezes você foi inferiorizada pelo seu marido, pelo seu chefe, pelo seu pai, pelo seu tio, pelo seu ficante, pelo seu namorado… Lembre das vezes que um homem te ergueu a mão pesada, das vezes que te chamaram de vadia por ser livre, por transar, por gozar, por colocar um short curto… Lembre das vezes que você sentiu medo de um grito, lembre das vezes que você sentiu medo de terminar um relacionamento, e das vezes que você terminou, mas que depois se sentiu sozinha porque ele te domesticou, porque ele quis ser o único da sua vida, porque ele te tomou posse, porque ele te tirou a liberdade, lembre das lágrimas, dos noticiários, dos estupros, da vizinha com o olho roxo, das mortes diárias, lembre dos abusos infantis, lembre de você, lembre de mim, lembre do grito, lembre da dor.

Eu fui pra rua por você colega, amiga, prima, tia, mulher, mulher de peito, mulher de pau. Eu fui pra rua pela Claudia, pela Tayná, pela Maria e por tantas outras.

As minhas tetas estavam de fora sim, mas as minhas lágrimas também. Eu chorei por nós, pelos números, pelos nomes, pelos casos, pelos desabafos. Eu chorei porque eu não aguento mais. Mas depois eu chorei porque vi que não estamos sozinhas, e nessa hora eu chorei e sorri.

É isso que a marcha das vadias faz com a gente, nos empodera, nos dá forças quando nada mais faz sentido, nos lembra que é difícil sim seguir na militância, que é difícil aguentar as críticas, que é difícil se mulher, mas que não estamos sozinhas e que é difícil para todas.

Não precisamos de um diploma para nos emponderarmos. Precisamos de garra, de força, de reflexão e de amor! Olhe para o lado e enxergue aquela mulher da sua família que sofre, aquela moradora da sua rua, a sua vizinha talvez, a sua amiga… Não precisa de muito, porque mesmo abraçando poucos a gente consegue abraçar o mundo!