Notas sobre (in)visibilidades lésbicas na TV aberta do Brasil

Texto de Lettícia Leite com colaboração de Bia Cardoso.

Já vi muita televisão aberta nesta vida. Porém, como há um certo tempo não vivo no Brasil, atualmente pouco acompanho o que se passa na televisão, especialmente no que diz respeito ao conteúdo dito de entretenimento que compõe a programação dos canais abertos e fechados. No entanto, interessada que sou pelo que acontece no Brasil — interesse que passa pelos fatos oficialmente mais relevantes e também pelos mais “banais” — fato é que, seja por intermédio de compartilhamentos de pessoas amigas, do conteúdo digital produzido pela imprensa ou por intermédio de alguns blogs, chegam-me daqui e dali imagens e notícias as mais variadas.

No meio destas trocas, numa das minhas passagens pela Internet me deparei com duas notícias. A primeira trata-se do ensaio fotográfico feito por duas ex-participantes do Big Brother Brasil 2014: Clara e Vanessa. A segunda, trata-se do esperado e (mais uma vez) efetivado beijo “lésbico” em uma telenovela. O casal da vez é formado pelas personagens Clara (Giovanna Antonelli) e Marina (Tainá Müller) na novela “Em Família” (2014). E desta vez, foram duas cenas de beijo que foram ao ar: a primeira no dia 30 de junho, quando Clara aceitou o pedido de casamento de Marina e, a mais recente, no dia 16 de julho, quando é exibida a cerimônia da união civil das duas personagens.

Clara (Giovana Antonelli) e Marina (Tainá Müller) se casam na novela "Em Família" (2014).
Clara (Giovana Antonelli) e Marina (Tainá Müller) se casam na novela “Em Família” (2014).

Visto o ensaio fotográfico, reconheço que senti um certo incômodo. Lidas algumas notas sobre o beijo, ficou-me uma sensação de cansaço, mais do que qualquer outra coisa. Uma certa preguiça e sentimento de impotência diante do fato de que um beijo, um simples beijo, numa novela, entre duas pessoas, ainda possa ser matéria de “polêmica”.

Como é possível deduzir, não assisti ao BBB 14, mas pelo que vi, Vanessa e Clara ficaram próximas logo no início do programa e desenvolveram um relacionamento. O romance das duas tinha uma grande torcida: #Clanessa, o que resultou no primeiro lugar para Vanessa e no terceiro para Clara. Ao término do programa, Clara declarou que pretendia seguir com o relacionamento, já que não possui uma relação monogâmica com o companheiro e pai de seu filho. Porém, recentemente as duas se separaram.

Isso é tudo que sei sobre ambas. Pois, na verdade, não é particularmente nem a vida de Clara nem tampouco a de Vanessa que me interessam; mas sim o quê da sua relação afetiva e erótica, elas — na melhor das hipóteses — permitem ser vendido e representado pela mídia, para ser consumido pelo público. Em suma, quero pensar sobre algumas características que permitem que estas (e não outras) imagens sejam visibilizadas.

Convém não esquecer que vivemos em um país que, em 2011, proibiu o kit anti-homofobia nas escolas, assim como tem uma nada desprezível dificuldade em aprovar pautas ligadas às reivindicações dos movimentos LGBT’s. Não por acaso, durante o período em que foi presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, o deputado e pastor, Marco Feliciano, propôs votar um projeto de lei que ficou popularmente conhecido como “cura gay”. Isto para não falar de que no Brasil, embora a homossexualidade não seja crime, contamos com índices para lá de alarmantes quando se trata de homofobia e de suas consequências-limites: homicídios e agressões, em graus dos mais variados, motivados seja pela opção/orientação sexual de algumas pessoas e/ou por suas identidades de gênero.

Além disso, o Big Brother Brasil é um programa veiculado pela mesma emissora que há um bom tempo tem alimentado uma polêmica midiática em torno da exibição de um “beijo gay”. Pois, se é fato que as novelas feitas pela emissora desde muito contam com personagens cuja homossexualidade é (mais ou menos) explícita, sejam por caracterizações as mais variadas, seja por apresentar casais formados por pessoas do mesmo sexo (1); é notório que um beijo em novelas, entre dois homens, só teria tido espaço esse ano na tela da Rede Globo. “Feito” protagonizado pelo casal Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso), no último capítulo da novela “Amor à vida” (2013). Cena que, pelo pouco que pude ver/ler, foi bastante festejada e discutida país afora.

No entanto, nunca é demais lembrar que lá se vão três anos que uma cena de beijo entre duas mulheres, Marcela (Luciana Vendramini) e Marina (Giselle Tigre) foi ao ar na novela “Amor e Revolução” (2011) do SBT. E, que não por acaso, foi relembrada e elogiada a título de comparação ao primeiro e bastante tímido beijo entre Clara e Marina (2). Ainda assim, é interessante lembrar que, embora as personagens Marcela e Marina tenham terminado a trama juntas, nenhuma outra cena de beijo entre as personagens foi ao ar. Pelo contrário, apesar de gravada, uma segunda cena acabou cortada.

Voltando ao BBB, vale a pena lembrar que na edição de 2005, o ganhador foi o atual deputado federal Jean Wyllys, que reivindica sua identidade gay sem rodeios e que hoje, no exercício do cargo político, continua atuando como militante de muitas pautas que fazem parte das agendas dos movimentos LGBT’s no Brasil. Neste sentido, a vitória de Vanessa parece corroborar a possibilidade de não rejeição popular a (algumas) pessoas que expressam sua (homos)sexualidade, assim como outras formas de acordo afetivos.

Dito isso, muito embora Vanessa e Clara tenham assumido aos olhos de milhões de espectadores uma relação homoafetiva, quero sublinhar que não sei de fato como uma e outra posicionam-se com relação a suas escolhas afetivas e/ou eróticas. Isto feito, e apesar da vitória de ambas, duvido que elas também tenham deixado de ser alvos dos mais variados insultos. Ofensas talvez motivadas pela relação de ambas, pelo fato de uma delas ser mãe, stripper e manter uma relação não-monogâmica. Ademais, vale não esquecer que o vencedor da décima edição do programa, Marcelo Dourado, não hesitava em expressar seu nojo pela jornalista companheira de confinamento Angélica Morango, que se declarava abertamente lésbica.

Vanessa e Clara se beijam no BBB 14 da Rede Globo.
Vanessa e Clara se beijam no BBB 14 da Rede Globo.

Diante disso tudo, a meu ver, é inegável que tanto Clara como Vanessa possuem algo a seu favor, e que em boa parte isso explica a possibilidade de a (homo)afetividade e o erotismo entre ambas possam ser publicamente expressos e comercializados para o grande público. Ambas contam com o alto grau de reconhecimento de seus respectivos atributos físicos, que são validados socialmente como belos, e compatíveis com o que a grande maioria das pessoas entende por “feminilidade”. Não por acaso, Vanessa trabalha como modelo e Clara como webcam stripper — atividades profissionais em que o aspecto físico desejável aos olhos de uma maioria consumidora é indiscutivelmente um fator decisivo.

Talvez por isso, as imagens que compõem o ensaio fotográfico para o site Paparazzo, provocaram-me um certo incômodo e também um desejo de me debruçar sobre ele. Pois, mais uma vez, eu me vi ali, diante de fotos que me remetem ao de sempre: imagens de dois modelos de mulheres (cis) mostrando um (homo)erotismo já bastante presente na Internet. Isso porque são imagens aceitas, buscadas e consumidas, acredito eu, por uma maioria formada por homens heterossexuais.

Assim, embora eu reconheça um certo movimento de mudanças que possibilitaram que tanto a novela do horário nobre, quanto o BBB, tenham sido palcos de beijos lésbicos “de verdade” e, certamente de carícias mais íntimas e/ou demonstrações homoafetivas outras; fato é que as imagens que representam estas homo-eróticas-afetividades continuam sendo mais do mesmo. Tratam-se de representações cujos sujeitos, consumidos são mulheres-cis “suficientemente” bonitas, femininas, sexy, brancas, classe média. Enquanto representações de um outra expressão de lesbiandade, como a “caminhoneira” — assim como o “gay afetado” — continuam sendo representados (e no mais das vezes ridicularizados) de forma caricaturada dentro de programas de humor.

Neste sentido, vale a pena conferir a personagem Deise Coturno, interpretada pela atriz Norma Bengell no programa “Toma lá da cá” (2005 – 2009). Personagem que parece ter tido o poder de libertar a própria atriz do que ela viveu como um peso: ser um ícone sexual.

Quanto à novela “Em Família”, quero sublinhar alguns aspectos. O primeiro deles é que pelo que vi, Clara identificava-se como bissexual e não como homossexual, como parece ser o caso de Marina. Na cena em que Clara descobre perplexa que Marina “é”, a personagem é referida como “sapata”. Outro aspecto importante é que, apesar de toda a (hetero)normatividade ligada às representações de Clara e Marina, o que inclui mais uma vez: cor, classe social, características físicas e caracterização; ainda assim, as personagens demoraram a engrenar seu romance. Isto porque pesquisas apontavam que o público rejeitava a ideia de uma mãe que largaria o marido doente, Cadu — vivido pelo galã Reynaldo Gianechinni — para ficar com uma mulher. Entretanto, apesar de toda resistência, a trama seguiu seu rumo e, depois do transplante de Cadu, o romance pôde de fato engrenar.

E isto, visto de uma perspectiva da história das telenovelas globais, é sem dúvida uma vitória. Lembremos que o autor Silvio de Abreu viu-se pressionado a matar o casal de lésbicas Rafaela (Christiane Torloni) e Leila (Silvia Pfeifer) na explosão de um shopping em “Torre de Babel” (1998). O que também obrigou o autor a mudar todo seu plano inicial relativo ao destino de uma delas. E, se as personagens Clara (Paula Picarelli) e Rafaela (Alinne Moraes) tiveram direito a uma cena de beijo ao final do folhetim “Mulheres Apaixonadas” (2003), do mesmo autor de “Em Família”, Manoel Carlos, elas ali encarnavam o par romântico Romeu e Julieta, recurso que acabou por tornar o beijo fictício dentro da trama.

De modo que se, sim, o primeiro e o segundo beijos entre Mariana e Clara ocorreram dentro de dois contextos românticos clássicos: pedido de casamento e a cerimônia propriamente dita, na qual (talvez) para reforçar o conceito de alma gêmea, as duas casaram com vestidos, cabelos e acessórios iguais. Esta normatividade, porém, a meu ver, não diminui a importância da cena. Ora, estamos falando de uma cena de união civil entre duas mulheres que, apesar de toda rejeição do público, foi ao ar em horário nobre. Cena que, além disso, deu a ver uma conquista de direito bastante recente. Eu mesma fiquei bastante tocada ao assisti-la, apesar de (ou talvez por) só ter visto estas e outras cenas desvinculadas de todo o contexto maior da trama.

Diante deste quadro, se pensarmos apenas no que é veiculado pelos canais de televisão aberta, no Brasil, o balanço é ainda um tanto quanto desanimador. Pois, estas representações em sua maioria, passam ainda a milhas e milhas de distância de uma pluralidade de realidades de pessoas que, para além de tantos outros traços que as (auto)definem partilham a identidade de se dizerem lésbicas. Vivências as quais, felizmente e em diferentes medidas, cada vez mais encontramos em outras (re)produções culturais produzidas por esta sociedade na qual nós também atuamos e no entanto, bem ou mal, somos ainda em grande parte excluídas e deslegitimadas de maneiras diversas (3).

Neste sentido, é claro que, como o professor Leandro Karnal nos sugere, podemos nos questionar igualmente sobre os motivos que fazem com que em nossa sociedade – saturada por imagens e por um discurso que pretende pleitear por uma vivência sexual considerada plena (para quem?) – ganhe tamanha importância a presença e/ou ausência de um simples “beijo gay” numa novela. Afinal, este espaço ainda bastante popular de representações, que já pôs em discussão outras tantas questões consideradas polêmicas (a dependência química, o incesto, insinuações de pedofilia), por um bom tempo negou-se sistematicamente a mostrar um simples beijo, consentido, entre duas pessoas adultas. E, neste sentido, a ausência e a polêmica em torno da temática denunciam a dimensão do tabu que ainda representa a vivência de outras formas de sexualidades na sociedade brasileira.

No entanto, diferentemente do que argumenta Leandro Karnal, isso não me parece implicar no risco que a possibilidade de sua presença nas telinhas possa vir a se investir do poder de autorizar e/ou validar a existência de relações homoafetivas também do lado de fora das telas. Pois, felizmente, eu e tantas outras pessoas — e outras tantas muito antes de nós — estamos aí vivendo nossas vidas e nossas relações para provar o contrário!

Além disso, acredito que talvez a popularização destas representações pode vir a apresentar uma outra potência: ser um dos veículos capazes de colocar na ordem do dia a possibilidade de existência, para um número não desprezível de pessoas, de outras formas de atrações, relações. Enfim, de possibilitar um começo de diálogo sobre esta temática entre mães, pais, filhos e filhas, e outras pessoas que fazem parte do círculo afetivo e social de cada um.

“Em Família, pelo pouco que acompanhei, teve alguns diálogos entre Clara e sua mãe Chica, com a irmã Helena e com o filho Ivan, entre outras cenas que, acredito eu, podem por ventura dar o que pensar, sobretudo para pessoas que não tem contato com os debates travados em outros espaços de discussão. Para não falar de outras temáticas implicadas e já abordadas por meio de outras personagens lésbicas: adoção, herança, lesbiandade na adolescência.

Eu mesma ainda me lembro quando vi pela primeira vez duas mulheres juntas, abertamente juntas. Visto que, tendo crescido e vivido numa cidade pequena do interior do Brasil só conheci a possibilidade de uma vida afetiva entre duas mulheres pelo contato com dois casais dos quais tenho pouca lembrança. Do pouco que guardo na memória, pude já compreender que sim, eram casais, todo o mundo sabia, mas optava-se por não falar abertamente no assunto. Para isso, era necessário que todas as pessoas ali “consentissem” em tolerar um acordo tácito de manter qualquer possibilidade de demonstração afetiva pública como uma impossibilidade.

Apenas anos depois, eu perceberia como este acordo tácito por vezes tem efeitos bastante sutis e também violentos, que fazem com que as pessoas meçam os efeitos da menor demonstração de carinho em certos lugares. E, infelizmente, tendo a pensar que em alguma medida todas as pessoas que viveram ou vivem relacionamentos homoafetivos já passaram por isto.

Opto por celebrar as visibilidades lésbicas que hoje temos nas telas da televisão aberta do Brasil, assim como em outros espaços mais ou menos acessíveis. No entanto, convido a todas as pessoas — e aqui em especial àquelas que se identificam como lésbicas — a contarem mais e mais histórias, de modo a diversificar e dar a ver outras tantas possibilidades de vidas.

Notas:

(1) Listo abaixo algumas das personagens abertamente lésbicas ou não, que apareceram em novelas, série e outros programas da Rede Globo:

  • Novelas: “Vale Tudo” (1988-1989) Cecília e Laís (Lala Deheinzelin e Cristina Prochaska). Laís ao final encontra Marília (Bia Seidl). “A Indomada” (1997) Zenilda e Vieira (Renata Sorrah e Catarina Abdalla). “Torre de Babel” (1998) Rafaela e Leila (Christiane Torloni e Sílvia Pfeiffer). “Mulheres Apaixonadas” (2003) Clara e Rafaela (Paula Picarelli e Alinne Moraes). “Senhora do Destino” (2004) Jennifer e Eleonora (Bárbara Borges e Mylla Christie). “Belíssima” (2005) Rebeca e Karen (Carolina Ferraz e Mônica Torres). “Duas Caras” (2007) Dolores (Vera Fisher). “A Favorita” (2008) Stela e Catarina (Paula Burlamaqui e Lília Cabral). “Insensato Coração” (2010) Araci (Cristiana Oliveira).
  • Séries: “Anos Dourados” (1986) Marina (Bianca Byington) terminou vivendo em Nova York com sua companheira (fato que foi narrado). “Engraçadinha: seus amores e seus pecados” (1995) Letícia (Maria Luíza Mendonça).

(2) Vale destacar que “Amor e Revolução” (SBT, 2011), trouxe também outros personagens não-heterossexuais.

(3) Para pensar na literatura e em outros tipos de produções nacionais:

Editora Malagueta – http://www.editoramalagueta.com.br/editora3/

Filmes: “Como Esquecer” (2010) Júlia (Ana Paula Arósio) e Helena (Arieta Corrêa); “4 Minas” (2012); “Flores Raras” (2013); “Ariella, a paranóica” (1980) Nicoli Puzzi (Ariella)/ Mercedes (Christiane Torloni, noiva do irmão de Ariella por quem ela é apaixonada). “Tessa, a gata” (1982) Nicoli Puzzi; “A mulher-serpente e a flor” (1983) Renata e Mirtsa (Ciça Manzano e Patrícia Scalvi /Elizabeth Gasper); “As Feras” (1995) Lúcia Veríssimo e Sônia (Monique Lafond); “A Partilha” (2001) Laura e Célia (Paloma Duarte e Guta Stresser); “Histórias de amor duram apenas 90 minutos” (2010) Júlia e Carol (Maria Ribeiro e Luz Cipriota); “Assalto ao Banco Central” (2011) Telma Monteiro e Regina (Giulia Gam e Antônia Fontenelle); “Febre do Rato”(2012) Ineida (Nanda Costa).

+Sobre o assunto:

[+]  A heteronormatividade nas representações de personagens não-heterossexuais nas telenovelas da Rede Globo (1998 A 2008). Por Leandro Colling.

[+] A Representação de Personagens Não-Heterossexuais nas Telenovelas da Década de 80. Por T. B. Vivas.

[+] Representações das identidades lésbicas na telenovela Senhora do Destino (.pdf). Por Silvia del Valle Gomide.

[+] Para lésbicas, namoro velado entre Clara e Marina é fetiche e retrocesso.