Texto de Jessica Romero.
Então vamos falar de desafios? Primeiramente preciso falar sobre a minha relação com maquiagem. Eu gosto de estar maquiada, me maqueio com frequência, é um fetiche de consumo e também uma vaidade. Mas saio tranquilamente de cara lavada e evito me maquiar diariamente para não agredir minha pele. Essa relação mudou completamente há pouco tempo, depois que me senti empoderada pelo feminismo. Está sendo um aprendizado descobrir que minha beleza não precisa de aprovação alheia, apenas de amor próprio. E isso não tem a ver com gostar ou não de elogios ou se achar uma deusa da Terra, mas sim com o fato de que ter autoestima e segurança faz uma mulher mais forte e feliz. Acredito que toda mulher é linda e a participação no movimento feminista nos faz compreender e perceber melhor isso.
É relevante dizer que escrevo reconhecendo que tenho privilégios diante do padrão de beleza que temos imposto na atual sociedade. Ser branca, cis e magra já me tira de algumas situações agressivas em relação à cobrança social do que deve ser a “beleza feminina”. Portanto, é mais fácil para uma mulher como eu, ter a sua beleza aceita socialmente, com ou sem maquiagem.

A primeira intenção do “Desafio Sem Make” foi ótima e espero que tenha dado certo para muitas garotas. Nos libertarmos da ideia de que estar maquiada seja algo importante para nos considerarmos, sentirmos ou sermos bonitas é necessário. O uso da maquiagem precisa ser uma escolha individual a partir da plena consciência de que somos todas naturalmente lindas em nossas diferenças. Acho super positivo quando famosas postam suas fotos sem maquiagem e desconstroem a perfeição inexistente das capas de revistas vendidas a nós. Mas acredito para nós, “mulheres comuns”, isso não devia ser posto através de um “desafio” público. Não devíamos precisar provar aos outros e nas redes sociais que somos bonitas “de qualquer jeito”.
Não critico as meninas que participam, acho que a ideia tem seu valor. Porém, creio que vale também questionar a real face do que está por trás dessa brincadeira: a velha necessidade de provação e aprovação de beleza que nós mulheres temos que passar o tempo todo.
O uso da maquiagem nos é cobrado desde muito cedo, quando ainda nem entendemos o que significa esse pacote todo de “ser mocinha”. A vontade ou a obrigação de usar maquiagem sempre surge de uma pressão evidente ou invisível para nós mesmas. Pode vir de todos os lados: da família, do grupinho de amigas, da mídia, da publicidade, das pessoas com quem nos relacionamos ou até mesmo como exigência para ocupar certos cargos de trabalho. Vontade e obrigação, nesse caso, se confundem e vivem se equilibrando numa linha tênue.
Acredito que essa é mais uma tensão consequente do machismo (a velha história de que mulheres existem para serem bonitas e agradar) e que se ampara no capitalismo, pois juntos eles nos vendem um ideal inalcançável de beleza que nos faz comprar e consumir maquiagens, revistas, roupas, acessórios, tratamentos, cirurgias, etc. Enfim, se a lógica fosse contrária e vivêssemos num sistema que nos criasse para sermos seguras e independentes acima de tudo, todo esse mercado da beleza estaria falido. Portanto, é intere$$ante para muita gente que as mulheres sintam-se inseguras e comprem diversas coisas para se sentirem mais bonitas ou até mesmo minimamente aceitas por elas mesmas e pelos outros.
A ideia de aceitar-se bonita “até sem” maquiagem é ótima, mas deveria depender mais de uma desconstrução dos padrões de beleza e de uma mudança em como nos relacionamos com a beleza do que de likes alheios nas redes sociais. O Facebook, o Instagram e outras redes sociais, tornam-se só mais um ambiente em que somos cobradas a estarmos bonitas (com ou sem maquiagem), e a moeda de troca são os likes e comentários de aprovação.
Se nesse caso postar uma foto sem maquiagem é demonstrar-se segura e confiante, é preciso também analisar a importância do fator repercussão. Como sempre, na cultura machista, quando uma mulher mostra-se, aparenta ou finge estar segura, logo surgem comentários e julgamentos machistas. Coisas como “melhor com maquiagem” ou “se andar sem maquiagem vai ficar solteira pra sempre” apareceram na rede e só reforçam a ideia de que, mesmo na tentativa de desconstrução, ainda somos vistas como objetos e nossa missão no mundo é sermos belas princesas à espera de um príncipe, nesse caso, desencantado.
Comentários desse tipo nos mostram um termômetro da situação, pois mesmo com tantas provações não seremos totalmente “aprovadas” nunca. Quando uma mulher está “maquiada demais”, ela recebe críticas. Quando está sem maquiagem, também. Então, para onde caminhamos ao aceitarmos um desafio de servidão ao outro?
Outro lado do desafio é desconsiderar completamente outros tipos de relação que algumas mulheres tem com a maquiagem. Ao participar de alguns debates na internet, tive contanto com alguns relatos de mulheres trans* que me fizeram pensar. Não posso reproduzi-los, pois foram feitos em grupos fechados, mas em alguns o que percebi é que para algumas mulheres trans* poder usar maquiagem e sair na rua maquiada significa parte do sentir-se mulher, sentir-se no “corpo desejado” e consequentemente, sentir-se livre. O desafio de muitas mulheres é ter coragem de sair cotidianamente assim e encarar a transfobia por ser a mulher que é. Vi algumas mulheres trans* serem desafiadas a postar uma foto sem maquiagem, e uma delas disse que nunca o faria, pois aquilo seria uma autoagressão que nenhuma mulher cis poderia imaginar.
Dentro dessas discussões, também fui alertada para outras questões, como por exemplo: muitas mulheres têm sérios problemas de pele, cicatrizes ou marcas e usam a maquiagem para recuperar a autoestima e sentirem-se mais pertencentes do que socialmente é considerado uma mulher bonita. Desafiá-las a expor suas marcas não é necessariamente incentivá-las a se amarem e a sentirem-se bonitas como são, mas sim a dependerem de likes para que se amem e sintam-se bonitas. Isso vai na contramão de qualquer lógica de empoderamento feminino, pois creio que esse deva ser sempre um processo autônomo e colaborativo, não dependente.
Acredito no poder do compartilhamento da informação como arma para o empoderamento. As redes sociais me proporcionam diversas descobertas e trocas de experiências que considero importantes no meu processo de formação feminista. Porém, percebo que assim como isso pode ser usado a nosso favor, também é muito usado contra nós ou até mesmo em nosso favor, mas invisibilizando ou agredindo mulheres que fazem parte de minorias. É preciso ter cuidado com essa faca de dois gumes.
Na internet, os desafios da vida real parecem fáceis pelo caráter superficial que ganham devido à rapidez dos compartilhamentos. Nós mulheres sabemos que os reais desafios exigem mais de nós. Exigem uma luta cotidiana de combate às opressões e as construções machistas da nossa cultura. Para eles, tome sua dose diária de feminismo. E, em vez de esperar os likes alheios, curta-se. Você é linda!
Autora
Jéssica Romero é mulher, feminista e jornalista em construção. Escreve no site Desvio Livre e em sua página no Facebook.
+ Sobre o assunto:
[+] A loucura pela beleza. Por Karen Polaz no Biscate Social Club.
[+] Por que eu não participei do Desafio Sem Make. Por Gizelli Souza no Lugar de Mulher.
[+] “Parem com a loucura da beleza”: escritora confronta padrões em projeto de campanha publicitária.