Texto de Vanessa Rodrigues.
Comecei a namorar com o meu marido aos 22 anos. Ainda no comecinho do namoro, durante uma transa, a camisinha estourou. Isso acontece, a gente sabe. Não com muita frequência, mas, acontece: camisinhas rasgam, métodos contraceptivos falham e a gente engravida sem querer, sem desejar, sem buscar. Como ainda não existia pílula do dia seguinte na época, fiquei dias tensa, esperando a menstruação descer.
Se eu tinha 22, estava terminando a faculdade e vivia de estágio, ele não era muito diferente. Tinha 25 e se graduado, e nenhum de nós dois tinha a menor condição de sustentar uma criança. A gente gostava de ficar junto, mas nem sabia direito o que sentia um pelo outro e nem que futuro teria aquela relação. E mesmo que soubéssemos, definitivamente não queríamos um filho. Não naquele momento. Foi uma decisão mútua. Mas, mesmo que ele não tivesse concordado, eu já tinha tomado a minha. Não me passava pela cabeça qualquer outra alternativa. Ter um bebê, naquele momento, não estava nos meus planos. Eu não queria. Aliás, sendo bem honesta, mesmo que eu tivesse condições financeiras de manter um filho, eu não o teria na ocasião. A justificativa financeira foi importante, mas não a primordial. Fundamentalmente, eu não queria ser mãe aos 22 anos.

Felizmente, não houve gravidez. Minha menstruação veio no dia esperado e acabou ficando tudo bem. Aliás, felizmente nenhuma gravidez aconteceu em minha vida sem que eu quisesse ou planejasse e eu nunca tive que enfrentar, concretamente, a decisão de um aborto. Não que eu não tenha corrido outros riscos de engravidar. Corri, sim. Riscos com camisinha, riscos com tabelinha, com pílula, com coito interrompido… Todos aqueles que corremos quando temos vida sexual ativa, em maior ou menor grau. Talvez eu tenha tido foi sorte.
E digo felizmente porque reconheço que não deve ser fácil pra muitas de nós essa decisão. Eu mesma, com todas as minhas certezas e convicções, talvez tivesse tremido um pouco na hora H ou cultivasse um certo remorso por um tempo. Reconheço que não passei tão incólume assim à minha criação católica e, especialmente, patriarcal, com tanta culpa incutida e mitificação da maternidade. Ainda assim, no fim das contas, mesmo isso diz respeito apenas a mim. Nossas crenças, conflitos e educação religiosa não podem ser determinantes na decisão que uma outra mulher vai tomar sobre o seu próprio corpo. E o Estado tem que garantir que esse direito seja assegurado.
Mas, meu alívio veio mesmo quando soube que estaria livre de passar por aquela experiência que pode ser profundamente traumática para uma mulher que vive num país onde o aborto é considerado crime ou com restrições. E se eu tivesse mesmo que fazê-lo, como teria sido? O que teria acontecido? Sem dinheiro, a que eu estaria sujeita?
Provavelmente, teria apelado para um remédio ou uma clínica barata. Teria me exposto a um procedimento clandestino, correndo risco de vida, como Jandira Magdalena dos Santos. Podia morrer ou adquirir uma infecção que poderia, no futuro, dificultar ou me impossibilitar de ter filhos se e quando eu quisesse e planejasse. E, talvez, fosse maltratada e constrangida num hospital caso precisasse de socorro, podendo ser até denunciada e presa. E, possivelmente, ainda teria gente pra dizer que mereci. Teria gente pra me criminalizar, pra me responsabilizar, porque “na hora de fazer, abriu as pernas e virou os olhinhos…” Esta frase tão cruel, mesquinha, cínica, moralista e que deposita somente sobre a mulher a responsabilidade por uma gravidez indesejada.
E olha que estou falando de mim e da minha situação privilegiada de universitária, filha de classe média que, talvez, no final das contas, acabasse encontrando alguma outra saída menos potencialmente perigosa ou “mais limpinha”. Imagina para as centenas, milhares de mulheres pobres, da periferia. A elas, quem protege? A elas, o que resta?
Todas somos clandestinas. Uma em cada cinco brasileiras de até 40 anos já fez um aborto. Ingenuidade, hipocrisia ou desonestidade quem pensa e diz o contrário. A diferença é quem tem dinheiro para um procedimento menos arriscado e quem não tem e, por isso, morre.
E não posso deixar de lamentar profundamente constatar que uma mulher de 22 anos, vivendo uma gravidez indesejada hoje, vai ter que lidar essencialmente com os mesmos problemas, riscos e medos que eu senti há 20 anos. Por quanto tempo mais essa situação vai persistir? Quantas mulheres mais terão que morrer? É isso que queremos pra gente, nossas filhas, irmãs, netas, sobrinhas? Negar-nos o direito de tomar nossas decisões sem temores, riscos ou julgamento moral, incluindo o de exercer completa e livremente nossa sexualidade?
Até quando, tendo inclusive duas mulheres favoritas como candidatas a presidência da República, esse assunto vai continuar a não ser discutido como se deve?
Campanha 28 Dias Pela Vida das Mulheres
Dia 28 de setembro é Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto. Diversas ações serão realizadas. Entre elas está o site: 28 Dias Pela Vida das Mulheres.
Participe desse movimento escrevendo textos, publicando imagens ou mensagens com as #hashtags: #28set #LegalizarOAborto.
Autora
Vanessa Rodrigues é jornalista, co-fundadora da Casa de Lua e gostosa. Atualmente escreve noBrasil Post e pode ser encontrada também no Facebook e Twitter.