Texto de Camilla de Magalhães Gomes.
Meu voto nulo não é a negação da política.
Meu voto nulo é a afirmação da minha negação da política dos corpos possíveis levada ao extremo nas propostas dos dois candidatos que me deram aí a escolher, para as quais são, eles mesmos, condição do inteligível.
É a afirmação do meu compromisso com aqueles fora da matriz de inteligibilidade, aqueles condenados à vida em morte, aqueles cujos corpos não correspondem ao molde do humano construído no marco hetero-judaicocristão-branco-cissexual-classemédia-consumidor-motorista-aceleracionista que define os limites do visível/vivível. Com aqueles cuja cor, raça, etnia, orientação sexual, gênero (identidade de gênero incluída pra mim nesse conceito), condição de vida, construção de vida não se podem dizer.
Do meu compromisso por/para/com mulheres e homens trans de vida negada pelo não reconhecimento do gênero declarado; homens e mulheres indígenas jogados à rodovia, acossados, violentados e mortos pela grande obra da aceleração; gays, lésbicas, bissexuais cuja vida é taxada de “opção sexual, estilo de vida, promiscuidade, aberração”; mulheres sem o “dinheiro da clínica” que abortam e morrem clandestinas; mulheres negras presas no grande encarceramento da lei de drogas, mulheres negras que redesenham espaço, carinho, relações e conceito de família enquanto assistem irmãos, homens, pais morrerem no projeto genocida da juventude negra; homens negros vítimas da política de segurança repressora, puxados pelos cabelos, jogados em cubículos a dormirem empilhados junto de ratos, esgoto, morte, cabeças feitas bola de futebol; os que estão fora do jogo; sem teto feitos sem vida para que o jogo acontecesse.
Sem cinismo, reconheço: eu não sou nenhum desses, eu sou um corpo possível, eu sou o viver autorizado, o produto mulher do molde do humano inteligível. Posso, inclusive, vez ou outra me identificar ou ser identificada com um desses que me deram a escolher. Prefiro não. Dizer não a essa linha de possibilidade que traçaram.
Meu compromisso, então, pode ser tido por cínico. Eu sou o ser/fazer que compõe essa divisão do que é ou não permitido ser vida. Cínico também talvez porque toda política se assenta em e produz essa divisão.
Então que pelo menos meu voto nulo seja o meu compromisso com a política como atuação em direitos humanos, com a procura (tentativa?) de transposição destes limites, com a (ao menos) ampliação dos limites sobre quem pode ser. Ampliação que meu voto nulo quer dizer não reconhecer num governo de nenhum dos dois candidatos. Pelo contrário: meu voto quer dizer que, venha quem vier, não vejo possibilidade de quebra (nem de arranhão) nos limites da definição dos corpos possíveis.
É o meu compromisso de que, passada a eleição, continuarei aqui fazendo o que tenho feito sempre: uma política por/para/com estes invisíveis. De que assim, diante desses que aí estão, prefiro não.

Publicado originalmente em seu perfil no Facebook no dia 23/10/2014.