Aborto e a criminalização da solidariedade

Texto da Equipe de Coordenação das Blogueiras Feministas.

“O backlash é um retrocesso. É o retorno violento das ondas em direção ao mar depois de se chocar contra um obstáculo” (1).

No Brasil temos a impressão que essa metáfora das ondas não define bem o backlash. Temos a impressão que no Brasil o backlash é um tsunami que destrói tudo que foi conquistado.

A morte de Jandira Magdalena dos Santos Cruz ainda repercute. A semana começou com o delegado do caso indiciando o ex-marido e uma amiga de Jandira por “apoio moral”. Ontem, soubemos que o Ministério Público excluiu os dois da denúncia.

Parece que agora está tudo bem, não é mesmo? Não. Porque o mal feito pelo indiciamento e pela manchete não tem quem apague tão cedo. A angústia. A criminalização dos vínculos pessoais e do afeto. A certeza de que a vida de uma mulher é muito pouco importante. Está configurada a criminalização da solidariedade. É o backlash vivo e pulsando em toda sua misoginia.

Semana passada, a revista TPM lançou a campanha #Precisamos falar sobre aborto. Precisamos falar, gritar e continuar falando sobre aborto. E, precisamos legalizar o aborto, é urgente. Há pesquisas que indicam que a cada dois dias morre uma mulher no Brasil em consequência de um aborto clandestino. Esse número é barbaro, é escandaloso, é desumano. Essa mesma mulher que morre no Brasil provavelmente não morreria se morasse na França, no Canadá, no Uruguai, em Portugal, na Espanha, na Inglaterra e em tantos outros países onde o direito a escolha é legal e o aborto é feito gratuitamente e em segurança, oferecido a quem dele precise.

Banner da Campanha '#Precisamos Falar Sobre Aborto' da Revista TPM.
Banner da Campanha ‘#Precisamos Falar Sobre Aborto’ da Revista TPM.

Podemos não ter feito um aborto, mas em algum momento já ajudamos uma mulher que abortou durante sua recuperação ou uma amiga a procurar quem fizesse um aborto. Já fomos juntas tentar comprar remédio para tentar fazer um aborto. Felizmente, a maioria de nossas conhecidas estão vivas, mas muitos preferiam que elas estivessem mortas. Porque a empatia não existe nesses casos. Aos olhos do Estado brasileiro todas somos criminosas. Todas somos clandestinas.

A vida das mulheres, especialmente a vida das mulheres pobres — em sua maioria negras — no Brasil vale pouco, muito pouco, quase nada. Só num lugar onde a mulher não tem o menor valor pode-se conviver com um número escandaloso de mortes como esse e fingir que está tudo bem, que é assim mesmo, que não há nada a fazer.

Só num lugar onde a vida e o corpo de uma mulher valha tão pouco pode-se criminalizá-la pelas suas escolhas e criminalizar quem as ajuda, quem as acolhe, quem se solidariza com a sua situação. Ao indiciar pessoas por “apoio moral” ao aborto, a mensagem nefasta é bem clara: a mulher que aborta é uma criminosa, uma pecadora e deve ser abandonada por todos. Quem ousar ajudá-la será processado como cúmplice. Isso é a realidade do Brasil em 2014. Isolar e banir mulheres do convívio social pelo uso livre que fazem de sua própria sexualidade.

Achamos que mulheres devem ter direito ao aborto. Achamos que a sociedade tem que descriminalizar e, mais ainda, trivializar essa decisão. Não achamos que decidir fazer um aborto precise ser uma decisão difícil ou dolorida. Uma mulher deve poder decidir sem ninguém julgar. Se ela sofre ou não, se tem sentimentos ou não, não nos interessa e não deveria interessar a ninguém. Se ela resolve abortar porque não tem como criar um filho, ou porque não quer, ou porque tem nojo de ter um feto se desenvolvendo na barriga não deveria fazer diferença NENHUMA. É difícil decidir hoje? É sofrido? Sim. Mas não pelo aborto em si, mas por toda uma cultura de culpabilização da mulher, de controle do sexo e do gozo, de criminalização do aborto. Falar de aborto é falar de sexo. De liberdade sexual para mulheres. Não dá para falar de um moralizando o outro.

Não é possível falar de aborto cobrindo o sexo com moralismos. Mulheres fazem sexo por prazer. Mulheres que fazem sexo por prazer tem que ter o direito a fazer um aborto quando engravidarem e não quiserem estar grávidas. Lidem com isso. Isso não é sobre a vida de um feto, é sobre a vida das mulheres. É sobre o direito de se relacionar sexualmente e livremente. É sobre o direito ao próprio corpo. É sobre liberdade.

O que desejamos para as pessoas, para nossas amigas, irmãs, sobrinhas, filhas das amigas, primas, filhas das minhas primas, tias, mães, avós é que elas possam viver sua sexualidade de forma livre e segura. Todas as vezes que nos calamos sobre o aborto estamos colocando em risco a segurança e a felicidade de cada uma das mulheres que amamos. Cada vez que alguém escolhe individualmente “não se envolver” estamos colocando em risco as mulheres que amamos e todas as mulheres que são amadas por alguém.

Referência

(1) Tradução livre de uma frase do texto “Un pas en avant, deux pas en arrière”.