A água precisa ser assunto de todas as pessoas

Texto de Jussara Oliveira para as Blogueiras Feministas.

Estava evitando me aprofundar no grande assunto da vez porque de algum modo esse tema hoje me causa uma apatia absurda. Não é que eu ache que a crise hídrica não seja um tema de grande importância, pelo contrário. Exatamente por ser algo que conheci tão de perto e já discuti tanto sobre, é que está muito difícil comentar agora.

Para quem não sabe, nasci e cresci em Guarulhos, segunda cidade mais populosa do estado de São Paulo (mais uma cidade-dormitório), e que ainda possui uma grande área rural com floresta original “preservada”. Carrega também o título de ser uma das maiores economias do País. Motivo: concentra uma grande quantidade e variedade de indústrias. Talvez, não por acaso, seja a cidade que possui (ou já possuiu) um dos maiores reservatórios de água do estado.

Escassez de água e a adolescente ecochata

Falando um pouco mais sobre mim, assim como muitos (talvez a maioria de) guarulhenses, sou filha e neta de migrantes e imigrantes. Dos quais entre muitas dificuldades tiveram que passar muitas vezes por tempos de escassez de comida e água. Minha avó materna teve alguns problemas de desenvolvimento ósseo por conta das latas de água pesadas que teve que carregar na cabeça ainda criança.

Foi na pré-adolescência que comecei a me familiarizar com assuntos relacionados ao meio ambiente. A primeira produção literária da qual tive orgulho foi um roteiro que criei para um seminário sobre reaproveitamento da água, onde contei a trajetória de uma gotinha que passava por todo processo do ciclo da água até uma estação de tratamento.

Conhecendo todas as histórias da família e tendo um senso crítico incentivado desde cedo, foi muito fácil ligar as duas coisas e enxergar que cuidar do meio ambiente era um fator chave para garantir a sobrevivência de todos. Quanto mais me aprofundava nesse assunto, mais indignada ia ficando e mais urgente para mim era mudar minha rotina e de todas as pessoas próximas. Virei uma adolescente “ecochata”. Vivia brigando por temas relacionados ao não desperdício, reciclagem, poluição, etc. Mas ainda longe da militância formal e sem ver sucesso algum em explicar questões básicas como a importância de se reciclar certos tipos de matérias, fui me calando.

Tive alguma esperança de ver mudanças quando, já adulta, vi a sustentabilidade virar o assunto da vez. E, mais uma vez, tive uma grande decepção quando me dei conta que só um dos três pilares estava realmente tendo foco: o econômico. Como falar de sustentabilidade ignorando a sociedade e o meio ambiente? Bem… as grandes indústrias arrumaram um jeito.

Daí qual foi meu sentimento ao ver a falta de água na Cantareira virando assunto na grande mídia? Indiferença.

Eu cresci visitando as cachoeiras presentes nas serras do entorno dessa reserva. Cresci também vendo a mata sendo desmatada para dar lugar a áreas de habitação improvisadas que abrigam a população carente que aumenta e é expulsa dos grandes centros. Nunca precisei de filtro para tomar água diretamente da torneira na casa da minha mãe, mas fui vendo ela arrumando as mais variadas formas para lidar com o racionamento. A crise hídrica não começou a acontecer nos últimos meses.

A população da periferia de Guarulhos já enfrenta o racionamento não anunciado desde muitos anos atrás. Houveram épocas em que a agua só vinha em um determinado período do dia durante 3 vezes na semana. É comum nessas casas ter mais de uma caixa d’agua e ter como rotina reaproveitar a água usada para lavagem de roupa ou para outros fins, por exemplo.

Quando comecei a ver campanhas de “conscientização” do governo do Estado sobre o uso da água e as pessoas colocando a culpa da falta de água na falta de chuva. Tive uma crise de riso. Tipo, sério mesmo?

A auxiliar de servicos Eliziete Feitosa Sampaio, 47, mostra as garrafas que junta para ir até a bica buscar água na cidade de Itu (a 101 km de São Paulo). Foto de Moacyr Lopes Junior/Folhapress.
A auxiliar de servicos Eliziete Feitosa Sampaio, 47, mostra as garrafas que junta para ir até a bica buscar água na cidade de Itu (a 101 km de São Paulo). Foto de Moacyr Lopes Junior/Folhapress.

O meio ambiente e seus recursos “infinitos”

Existem algumas razões políticas para esse assunto ter virado foco da grande mídia nos últimos meses. Assim como existe alguma razão em se falar tanto do sistema da Cantareira quando a falta de água em outras reservas, como a do Alto do Tietê, já tem mostrado impactos muito maiores. E tenho ficado bem receosa com a quantidade de desinformação que tem aparecido tanto na grande mídia quanto em todos os canais de comunicação que tenho acesso.

Primeiro, rios e lagos não são bacias d’agua que a gente enche e usa a vontade para depois encher de novo. Eles precisam de um ecossistema para funcionar. Esse que tem sido destruído por interesses dos mais diversos.

Segundo, em uma cidade com tantas indústrias querem colocar TODA a culpa nos moradores pela falta de água? Mesmo se todos usassem a água dentro de casa da forma mais consciente e responsável possível não deixaríamos de enfrentar o problema que estamos enfrentando hoje. No máximo adiaríamos por mais alguns meses essa tragédia que já vem sendo anunciada faz muitos anos.

Daí, no desespero, começam a surgir um monte de campanhas e tentativas de mudança de foco. E começam a colocar TODA a culpa na agropecuária. Gente, mesmo se a agropecuária fosse a principal indústria do estado de São Paulo (e não é) ainda assim, em um estado com as cidades mais populosas do país e com uma área urbana tão grande ainda iam continuar existindo dezenas de fatores para essa escassez.

Sim, a agropecuária assim como outras indústrias, como a têxtil, por exemplo, tem mil motivos para serem questionadas não só com relação ao meio ambiente, mas também aem relação a  exploração socioeconômica. Mas, resumir todo o problema em apenas um desses fatores não vai nos trazer nenhuma solução de fato.

Desinformação e a cegueira hídrica

Falar em falta de água sem falar das indústrias ou do meio ambiente e das mudanças climáticas ou da situação política e socioeconômica (do Brasil e da região das reservas) ou de hábitos de consumo e eficiência em distribuição ou tratamento de esgoto e limpeza dos grandes rios ou do represamento de rios e lagos e construção de hidrelétricas ou ainda da água subterrânea presente no estado é ignorar a complexidade do problema.

Não é tirando um político do governo ou culpando as donas de casa por seus hábitos de consumo que vamos resolver tudo isso. Não existe resposta pronta para uma questão dessa magnitude. Caso alguém tente levar você a acreditar que é um problema pequeno ou simples, desconfie.

Precisamos questionar os dados e notícias que chagam até nós, trocar informações e ideias de como contornar as dificuldades relacionadas à falta de água que vão ser cada vez mais presentes na nossa rotina, pressionar as indústrias e o governo (em todos os níveis e canais possíveis), estudar e entender o histórico que nos trouxe até essa situação e mais do que tudo, não nos deixar imobilizar por sermos levados a acreditar que responsáveis são os outros.

A água não é mercadoria, é direito humano básico. As mulheres são duramente afetadas pelas consequências das mudanças climáticas e de crises de recursos básicos por conta de seu papel como cuidadoras da casa e da familia. Vale lembrar que o movimento de mulheres tem uma longa luta na área de justiça-socioambiental, que se fortaleceu no Brasil com a Eco-92, teve visibilidade na última Cúpula dos Povos e também esteve presente em 2014 na Conferência do Clima que aconteceu no Peru.

Há outros fatores que apontam problemas sociais que também precisam ser observados nesse momento de crise. As populações mais pobres são as que menos consomem produtos que usaram água em sua fabricação, mas são as primeiras a sofrer as consequências de racionamentos e outras ações, evidenciando a desigualdade social também presente na crise.

A falta de água não vai ser um problema para os nossos netos, é um problema hoje. Não é assunto de criança engajada e ativista de meio ambiente, é agora assunto de todos os moradores dos grandes centros no sudeste, mas há muito tempo é realidade nas periferias e antes disso dos muitos sertões no nordeste. É questão de gênero, é questão de raça, é uma questão para todo mundo. E mudar essa realidade depende da mobilização de todos nós.

Informe-se:

  • Tem, Mas Acabou. Página do UOL com notícias sobre a crise hídrica com foco em São Paulo.

[+] Sobre o assunto:

  • Gender e Water – Boletim da ONU com diversas informações e material (em inglês).