Texto de Adriana DeSanti.
Chegando em casa do trabalho, desço do ônibus na Rubem Berta. Carros e mais carros, atravesso metade da avenida e fico parada no meio dela, esperando cessar o movimento do outro lado — como sempre faço. Acreditem, é o mais prudente.
Alguém buzina com insistência. Olho. Não reconheço o indivíduo, viro o rosto. Ele volta a buzinar. Olho de novo. Decididamente, não sei quem é o cara, que vira a esquina e estaciona, me olhando pelo retrovisor. E não sai dali.
Eu no meio da pista, já sem querer atravessar, outro carro passa e buzina. “Gostosa”! O cara estacionado põe a cabeça para fora do carro e grita, xingando o outro. Continua ali.

Atravesso. Desvio o caminho e dou uma volta grande no quarteirão, para despistar, num misto de tensão, asco e raiva. Às vezes, o melhor caminho é o mais longo, Chapeuzinho. Há que se aprender a evitar o Lobo Mau para ele não te comer.
Tendo chegado em casa já não muito sã, mas salva, penso na minha raiva. Não pude reagir. Fiquei intimidada, sob risco de ser assediada e atropelada pela força bruta. A menina que aos 11 anos sofreu uma tentativa de agressão sexual e reagiu com uma cotovelada no estômago do indivíduo sentiu-se revoltada com a mulher que estava com medo do homem, talvez armado. Talvez, “armado”.
A menina não sabia quantos homens iguais àquele existem… E que são sempre uma cotovelada no estômago.
Penso: se fosse uma mulher a assediar assim um homem, seria vista como louca, ninfomaníaca (incrível, a palavra aparece direto no meu tablet com opção no feminino, diferentemente de “médica” e “talentosa”, por exemplo, que devem estar em algum lugar, ocultadas pelo masculino). Mas, ninguém ao redor — todos homens — esboçou reação de espanto, tão pouco tentou me proteger de algum modo da situação. O segurança da academia estava bem ali.
A objetivação sexual da mulher é poder masculino instituído. A cultura do estupro é poder masculino instituído. O esperado é que eu, menina ou mulher, fique intimidada por isso.
Como aprendi a duras penas a me defender na vida, sozinha, não sou de me intimidar, graças à menina. Se não uso o cotovelo, uso a palavra. Se há nó na garganta, a voz sai pelos dedos. E assim pediria aos homens, que em bom número têm ainda muito a evoluir, que não sejam coniventes com os “ómi” (alguns deles, aposto, bem próximos a vocês — seus amigos, colegas, parentes…), e nos ajudem a ensiná-los o básico, que parece fora dos padrões instituídos pelo machismo: a serem gente.
Autora
Adriana DeSanti é educadora, mestre em literatura. O feminismo é sua principal bandeira. Acredita na transformação social pela arte – por isso ensina, escreve e canta como profissões de fé.