Texto de Bia Pagliarini.
Eu já escrevi bastante sobre isso, mas eu fico injuriada com certas noções sobre as identidades trans. Uma delas é acerca da história das pessoas dizerem, a partir de um certo tom de “crítica aos estereótipos de gênero”, que ninguém “precisa” ser trans “por gostar de x coisa”, sendo x algo relacionado a um outro gênero em relação ao designado ao nascer de alguém.
O que fica implícito nessa suposta crítica é de que as pessoas trans só seriam trans porque estariam seguindo uma noção binária e estereotipada acerca das coisas que gostam de fazer, de forma com que elas estariam se iludindo a serem trans a partir de uma internalização de normas de gênero.
Eu me pergunto então: se nós supostamente trazemos a verdade para um sujeito supostamente “iludido”, dizemos que ele não precisa se assumir como trans por gostar de fazer ou ser x ou y e mesmo assim a pessoa deseja se afirmar enquanto trans? Quem determina que a pessoa está sendo iludida? Quer dizer então que temos que concluir que o sujeito prefere manter-se alienado? A partir de qual posição podemos afirmar algo deste tipo acerca da subjetividade trans de algum sujeito? Se ninguém precisa ser trans então quer dizer que todos nós devemos ser cisgêneros? Ou devemos ser “neutros” a partir do momento em que naturalizamos o ponto de vista da hegemonia da cisgeneridade? Então, qual é de fato o mecanismo de funcionamento e de revelação desta suposta verdade? Regressaríamos a normalidade da cisgeneridade a partir da revelação deste suposto saber universal de nossas identidades?

A partir desses questionamento já vemos como este discurso é recheado de inconsistências. Tal crítica que recai exclusivamente sobre as subjetividades trans é problemática por muitas razões. Primeiro, ela pressupõe um local neutro do qual essa crítica é feita, ou seja, ela coloca a cisgeneridade como ponto de vista epistemológico neutro. Segundo, pressupõe que a subjetividade trans se dê tão somente através de uma ilusão do próprio sujeito e como resultado homogêneo necessariamente de afetos tristes provenientes de normas de gênero impostas de forma exterior que um sujeito internaliza.
Essa crítica, então, ignora questões fundamentais 1) não existe ponto de vista neutro quando falamos de como o gênero interpela a nossa subjetividade, desta forma, não há como determinar se alguém é mais ou menos iludido em questão de estereótipos de gênero com base na universalidade da cisgeneridade 2) o parâmetro para determinar em que aspecto alguém deixaria de ser algo em decorrência de uma relação mais honesta com o próprio desejo não se dá através de critérios externos aos próprios sujeitos, ou de afirmações universalizantes 3) que as identidades trans são afirmações da potência de vidas diferentes decorrentes de afetos alegres, ou seja, são criações subjetivas antes de serem meramente produtos de normas de gênero pré-estabelecidas.
É óbvio que devemos lutar para que ninguém se veja constrangido a se subjetivar de determinada forma apenas em decorrência de estereótipos de gênero. Acontece que, de fato, este julgamento deve ser construído a partir da própria interpretação que um sujeito tem de si. Neste aspecto, é incorreto fazer generalizações acerca da própria transgeneridade.
Quem deve poder concluir em que medida foi “iludido” ou não é o próprio sujeito em sua singularidade (e poder desta forma estabelecer uma relação mais verdadeira com seu próprio desejo), ou seja, isso só se pode dar a partir da interpretação de si – que é um trabalho feito a partir de si, e não uma constatação previa – já que não existe transgeneridade universal. E para muitos sujeitos, a crítica à ilusão nós permite justamente podermos habitar o mundo a partir de uma vivência trans. De múltiplas formas.
Publicado originalmente em seu perfil do Facebook no dia 26/06/2016.