Texto de Viviane A. Pistache para as Blogueiras Feministas.
Dedico este conto às muitas Pretas que me inspiram (com a fé de que entre sonhos e pesadelos nos fortalecemos), e em especial à Amanda Silva, Monamuzinga!
Naquela noite chuvosa atendi sem resistência ao chamado que vinha da casa do sono. Ao entrar na sala dos sonhos dei de cara com uma ladeira e um bom pedaço de papel que me convidava pra escorregar. Uai, por que não? E depois de uma eternidade esquiando no barro, fui parar numa planície fantasma. Assustei. “Cadê o morro velho que me trouxe aqui?”
Sina de mineira é temer a morte das montanhas. No desespero até rezei pro horizonte desembelecer a passo de lesma, na esperança de que ficasse pelo menos um rastro luminoso da beleza de antes. Mas a culpa é do escorpião amarelo, aquele que tem uma escavadeira insaciável que há séculos fere o ventre da terra pra comer ouro. E ele cutucou até o formigueiro que dormia bem no pé da minha cama.
Ameaçada pelos ferrões da tradicional família mineira deixei pra trás o precioso conforto de casa, sem guerrear com o sangue que circula na minha árvore genealógica. Mas não sei se por medo ou precaução, enterrei no quintal um baú com alguns pesadelos e trouxe na mala os sonhos que julgava imprescindíveis. E assim foi que montei na garupa da minhoca de metal que veio serpenteando no lombo da Fernão Dias até chegar aqui.
Meu coração palpitava os superlativos de São Paulo, mas como nem tudo que reluz é ouro, flagrei muita criptonita no verde desta cidade. E se tem algo que esta megalópole demanda, é uma heroica capa vermelha embebida em vinagre pra gente não sucumbir à chuva de bombas e balas. E nem sempre o fogo é inimigo, já que o equívoco vive de tocaia à espera do nosso cochilo. Mas foi em pleno coração da Paulista que tive a revelação: Lá estava o escorpião amarelo reluzindo gigante à frente do batalhão de polícia; pronto para avançar sobre nós, flor Marginália de infinitas pétalas e cores.

Contra minha vontade os pesadelos despertaram e minha coragem gaguejou. Foi então que te vi Preta. Preta Maravilha que do alto arranha-céu convoca para a batalha ao som do tamborzão; cuja boca é uma chaminé baforando gargalhadas na cara da hipocrisia; que tem o corpo fechado à Zica pelas mãos da comadre Pimenta; Preta Maravilha que já engoliu sapos e Gilberto Freyre, mas que hoje canta Dandara ou Paulo Freire com fluência; provocando uma revolução indecente que deixa mulheres e homens babando de tesão ou de raiva. E foi então que vi seus dreads relampejarem em alto e bom tom: “Se eu posso cavalgar um búfalo indomável, acredito que você pode tomar as rédeas de um escorpião”.
E fui fortalecida. No caminho ainda pisei de propósito no pé do gigante branco, aquele tal bandeirante que guarda a entrada do MASP. Mas quando montei no escorpião a polícia riu de mim, achando que não eu poderia dominar uma arma sequer. Aquele escárnio coçou minha indignação e prontamente tratorei a tropa até reduzí-la a uma montanha de latinhas de alumínio. Mas não sou desatenta às consequências, de modo que e conforme o sábio princípio da reciclagem; saquei que um bom destino para elas era brilhar no céu paulistano tão carente de estrelas, já que lua cada qual tem a sua.
Autora
Viviane A. Pistache, mineira de Nova Lima. Graduada em Psicologia pela UFMG e doutoranda em Psicologia pela USP. Habito meu mundo na pele negra, abraçada pelo conforto da bissexualidade. Trago em minha cabeça crespas nuvens fartas, cada vez mais grisalhas.