Texto de Cely Couto para as Blogueiras Feministas.
Que o feminismo empodera e dá voz às mulheres, é fato. Mas quando o assunto é violência de gênero, muitas de nós se sentem completamente impotentes diante de uma situação de agressão física, psicológica ou sexual. Podemos enfrentar a violência no âmbito político, fortalecer políticas públicas de proteção às mulheres, discutir a eficiência das delegacias da mulher e da Lei Maria da Penha, mas o estigma de que o homem é fisicamente superior e de que sempre seremos oprimidas pela força ainda nos assombra.
Somos convencidas de que o potencial físico das mulheres é inferior e de que, no limite, sempre vamos levar a pior em um confronto com um homem. Coincidentemente, essa suposta superioridade física masculina ainda é usada para justificar o domínio de um gênero sobre o outro, por mais que seja um argumento que não cabe em uma sociedade que – pelo menos na teoria – aboliu a “lei do mais forte” e caminha na direção de um mundo não-violento.
Mas, afinal, as mulheres são mesmo mais fracas do que os homens? Para começar a responder a essa pergunta, precisamos rever uma das maiores falácias da história: o mito da fragilidade.
A mulher não foi sempre frágil
A visão das mulheres na pré-história como meras coletoras, que ficavam isoladas nas cavernas cuidando das crianças enquanto os homens caçavam, já foi refutada por várias pesquisadoras (recomendo a antropóloga Olga Soffer). Na verdade, as mulheres eram fortes e responsáveis por até 70% da alimentação das famílias no período Paleolítico, o que inclui caçar animais com arco e flecha, redes e lanças.
Na grécia e em Roma, as mulheres caçavam, montavam a cavalo, nadavam, remavam e dirigiam. Em Esparta, especificamente, as mulheres e os homens viviam separados em acampamentos militares até os 30 anos de idade, o que fez com as jovens fossem encorajadas a desenvolver força e independência, incluindo a prática da luta. E não podemos nos esquecer de grandes guerreiras como Joana D’arc, as Amazonas e as guerreiras africanas de Eritréia, e tantas mulheres que pegaram em armas e foram para os conflitos nas revoluções, mas são esquecidas e secundarizadas pelos feitos masculinos.
Potencial físico e diferenças biológicas
O preconceito de que o homem tem força física superior à da mulher encontra apoio nas literaturas das décadas de 1870, 1880 e 1890, que supostamente provava que os homens venciam as mulheres em quase todas as qualidades atléticas. No fim da década de 1990 é que esses estudos começaram a ser refutados e descobriu-se que eram inconclusivos. Ao invés de atribuir as diferenças físicas entre homens e mulheres cis ao sexo biológico, as novas pesquisas passaram a questionar a origem e efeitos dessa desigualdade, revelando que a diferença no treinamento é muito mais determinante para o desequilíbrio de habilidades entre os gêneros.
Se nós, feministas, já questionamos os estereótipos de gênero há tanto tempo, derrubamos o mito da “essência feminina” cuidadora e submissa, denunciamos a imposição de papéis sociais de esposa e mãe às mulheres como se fossem naturais e apontamos que sexo e gênero são construídos socialmente, porque seria diferente com o mito da fragilidade feminina? Dizer às mulheres que elas são fortes, sim, e que não existe uma fraqueza inata ao nossos corpos, é uma questão feminista.

Quando começa o mito da fragilidade
O mito da fragilidade ganhou força logo depois da Revolução Industrial. Com o desenvolvimento das máquinas, a força se tornou desnecessária, anulando o principal triunfo da masculinidade e afundando o homem em uma crise de identidade. Para compensar o sentimento de inferioridade masculino, as mulheres foram obrigadas a reduzir seu desenvolvimento físico.
Os esportes passaram a ser considerados “masculinizadores” e as mulheres foram condenadas ao sedentarismo, recebendo aulas de crochê e de etiqueta enquanto os homens se exercitavam e ganhavam saúde e vigor físico. O discurso médico passou a condenar a atividade física feminina, chegando ao ponto de dizer que prejudicava a reprodução e que exercícios podiam “deslocar o útero”. Nos consultórios, mulheres eram desencorajadas a fazer qualquer esforço físico, sob ameaça de que não poderiam cumprir adequadamente seu papel de esposa e mãe.
Ou seja, mulheres passivas e frágeis eram muito mais fáceis de ser controladas, mantendo a dominação masculina sobre seus corpos e vidas. Cabe aqui ressaltar que essa lógica era aplicada às mulheres brancas, em sua maioria, já que as mulheres negras sempre foram consideradas “mais fortes” e exploradas em trabalhos braçais. O mito da fragilidade se estende a todas as mulheres em algum nível, mas para as mulheres negras e indígenas, nunca houve o “privilégio” – ainda que problemático – de serem consideradas frágeis, pelo contrário: era conveniente escravizá-las, desumanizá-las e explorar a capacidade de seus corpos ao máximo (mais uma prova de que a questão é o interesse).
Desaprendendo a passividade
O que podemos concluir é que as mulheres não são “naturalmente” mais fracas que os homens. A suposta diferença biológica entre os corpos designados masculinos e femininos (do ponto de vista cisgênero) foi aumentada drasticamente pela construção social, que faz com que as meninas desacreditem da sua aptidão física desde pequenas. Meninos são encorajados a explorar o ambiente, a participar de jogos coletivos, praticar esportes e desenvolver a coordenação, enquanto as meninas são reprimidas, encorajadas a brincar de bonecas e casinha, a não ficar até tarde na rua, a não fazer movimentos bruscos e se comportarem como “mocinhas”. Nós somos vítimas do culto da incapacidade feminina, que nos faz acreditar que somos mais fracas desde pequenas.
O homem é forte, a mulher é fraca. O homem é violento, a mulher é passiva. O homem é mau, a mulher é boa. Enquanto existirem essas noções simplistas que nos aprisionam em esterótipos de gênero, as mulheres serão subjugadas pela suposta “força masculina”. Nossa única forma de reagir é desaprendendo a passividade e se apropriando de técnicas de autodefesa.
As mulheres sofrem uma lavagem cerebral para não reagir às situações de violência. Somos programadas para a submissão e temos que desconstruir todo um treinamento intensivo para a passividade, que é internalizado desde a infância. Temos o direito de nos defender e lutar pela integridade dos nossos corpos, mas para colocar isso em prática é preciso, primeiro, se enxergar de uma forma diferente, conhecer a própria força e limites – aí entra a autodefesa.
A autodefesa feminista
Sem o mito da fragilidade desencorajando nosso potencial, é claro que concluímos que é possível reagir a situações de violência e abuso. A autodefesa feminista, nesse caso, não se trata de uma modalidade específica de luta ou mesmo de técnicas que visam o confronto físico, mas de um princípio que todas as mulheres podem adotar para as suas vidas.
A essência da autodefesa feminista é preservar sua integridade e evitar qualquer tipo de agressão, física ou psicológica, visando a prevenção e fuga da situação. É verdade que, cada vez mais, as mulheres têm se aproximado fisicamente dos homens em competições esportivas, por exemplo, provando que o abismo do potencial físico entre os gêneros pode ser revertido. Mas, na nossa realidade, é preciso considerar que, muito provavelmente, o agressor ainda será mais forte e habilidoso na maioria das situações. Nesse caso, auto-defesa não é sobre enfrentar o agressor e correr riscos, mas, acima de tudo, garantir sua sobrevivência.
Estando consciente do seu corpo e da sua capacidade, você pode trabalhar desde a própria linguagem corporal, postura, percepção, tom de voz, expressão, até a resistência, habilidade e força físicas. Muito do que é considerado “masculino” em termos físicos é, na verdade, pura demonstração de poder e confiança, e nós devemos nos apropriar desses códigos para transmitir uma imagem mais segura e confiar na nossa capacidade de resistir.
Não é raro encontrar homens de porte físico mais modesto enfrentando oponentes muito maiores, porque eles aprenderam a usar seus pontos fortes e conhecem bem os pontos fracos do corpo do outro. Muitas mulheres se equiparam ou são até mais fortes que muitos homens, elas apenas duvidam de si próprias e não receberam nenhum treinamento sobre como direcionar sua força e habilidades.
Existem vários tipos de treinamentos de defesa pessoal, com referências a diversas artes marciais, que são extremamente recomendáveis para desenvolver segurança e técnicas apropriadas para reagir a qualquer situação de violência, independentemente de condição física. A prática de todas essas modalidades tem como resultado o aumento da confiança, mas como nem sempre existe uma preocupação em adaptar os treinos à realidade das mulheres, é preciso lembrar que a “sensação de inferioridade” é um mito repetido à exaustão nas nossas mentes e deve ser combatido.
Estamos alguns passos atrás, e é bom estarmos cientes disso para não criarmos expectativas irreais e acabarmos desistindo, mas sim: as mulheres podem ser tão fortes quanto os homens e o medo de ser agredida pode virar coisa do passado em um tempo não tão distante. Até lá, é pauta feminista encorajar o desenvolvimento físico das mulheres, reivindicar a educação física e motora para as meninas e promover a autodefesa feminista enquanto resistência contra a violência patriarcal.
Referência
O mito da Fragilidade de Colette Dowling. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 2001.
Autora
Cely Couto é redatora, feminista por sobrevivência e libertária por coerência. Escreve no Café Feminista.