Ocultando os efeitos colaterais dos contraceptivos hormonais: uma história racista e sexista

Texto de Bethy Squires. Publicado originalmente com o título: The Racist and Sexist History of Keeping Birth Control Side Effects Secret, no site Broadly em 17/10/2016. Tradução de Ana Cristina para as Blogueiras Feministas.

Um estudo recentemente publicado traz à tona a alarmante relação entre anticoncepcionais hormonais e a depressão. Mas os resultados encontrados são apenas os mais recentes de uma longa sucessão de batalhas, travadas por mulheres com seus médicos, por informações precisas sobre métodos contraceptivos.

Em setembro, a JAMA Psychiatry publicou um estudo dinamarquês que encontrou correlação entre o uso de anticoncepcionais hormonais e o diagnóstico da depressão clínica. O estudo monitorou o uso de contraceptivos hormonais e a prescrição de antidepressivos por mais de seis anos, e para mais de um milhão de mulheres. Eles descobriram que mulheres que faziam uso de contraceptivos hormonais – fosse a pílula, dispositivo intrauterino (SIU) ou o anel vaginal – tinham chances significativamente maiores de precisar da prescrição de antidepressivos.

Desde que a notícia do estudo surgiu, muitas mulheres relataram se sentirem justiçadas, uma vez que a ciência está finalmente reconhecendo suas experiências de vida. “Eu tomei a pílula por dez anos”, conta Holly Grigg-Spall, autora do Sweetening the Pill (“Adoçando a pílula”). “Uma em particular, a Yasmin, provocou efeitos colaterais gigantes – efeitos psicológicos: depressão, ansiedade, ataques de pânico. Por dois anos eu não liguei os pontos entre o que estava acontecendo comigo e a pílula”.

Ainda, o estudo encontrou uma correlação particularmente forte entre adolescentes que fazem uso de contraceptivos e a depressão: as adolescentes que usavam a pílula tinham 80% mais chances de precisarem de antidepressivos. Essa estatística é especialmente perturbadora, uma vez que muitas adolescentes tomam pílulas anticoncepcionais antes de se tornarem sexualmente ativas, prescritas por médicos para tratar espinhas ou sintomas intensos da menstruação e, às vezes, apenas como medida geral e preventiva. “Era visto como algo essencial a ser feito”, diz Grigg-Spall, “era mais um rito de passagem do que qualquer outra coisa”.

Embora possa ser o primeiro estudo desse tipo a discutir a relação entre anticoncepcionais hormonais e a depressão, esse estudo não é o primeiro a encontrar um vínculo entre métodos contraceptivos hormonais e alterações de humor. É, apenas, o mais recente de uma longa sucessão de batalhas, travadas por mulheres com seus médicos, sobre métodos contraceptivos.

No início do século XX, a contracepção era ilegal na maioria dos estados dos Estados Unidos e, 26 estados proibiam que mulheres solteiras tivessem acesso a métodos contraceptivos até a década de 1960. As mulheres estavam, muitas vezes, à mercê de seus úteros e tinham que lidar com uma gravidez não planejada atrás de outra gravidez não planejada. Uma solução comum era a histerectomia, ou retirada do útero. “Nós fazíamos a retirada pouco tempo após o parto. Seis ou sete semanas depois”, conta o Dr. Richard Hauskenecht no documentário da PBS, American Experience: The Pill (“Experiência americana: a pílula”). “Ao fazer a histerectomia vaginal em alguém que já tinha três ou quatro filhos, seis semanas após o parto, você tem duas opções: ou você é extremamente rápido, ou é melhor estar com o banco de sangue preparado, pois a perda de sangue será espantosa. Era algo arcaico, totalmente arcaico”.

Quatro pessoas foram pioneiras no desenvolvimento dos anticoncepcionais hormonais: a ativista e educadora sexual Margaret Sanger, que recorreu ao movimento eugenista para defender o controle de natalidade; o biólogo Gregory Pincus; a sufragista e herdeira milionária Katherine McCormick e o médico ginecologista John Rock, católico. Pincus descobriu que animais que recebiam injeções de progestina não ovulavam. Porém, injeções frequentes não foram vistas como uma solução viável, então, o desenvolvimento de um contraceptivo oral ganhou impulso. McCormick custeou, do próprio bolso, o desenvolvimento da pílula. Na década de 1950, em Massachusetts, Rock proporcionou cobaias humanas ao dar a pílula a suas pacientes, sob o pretexto de um estudo sobre fertilidade. Ele não informou às pacientes que a pílula havia sido elaborada para evitar que engravidassem. Muitas mulheres abandonaram o estudo inicial em Massachusetts, pois não aguentaram os efeitos colaterais: inchaço, formação de coágulos potencialmente fatais e alterações de humor.

O grupo começou a ter dificuldades para iniciar os testes clínicos nos Estados Unidos, em parte porque os métodos contraceptivos ainda eram ilegais na maioria dos estados, e também pela alta taxa de desistência em seus estudos menores. Com isso, Pincus e Rock pensaram em Porto Rico, onde preocupações sobre superpopulação, em parte alimentada pelo movimento eugenista, faziam com que não houvessem restrições a contraceptivos e que abortos fossem legais na ilha. Na verdade, muitas mulheres porto-riquenhas foram esterilizadas sem seu consentimento ou ciência, em um procedimento que era popularmente conhecido como “La Operacion”, durante as décadas de 50 e 60. Pincus e Rock presumiram que encontrariam, na ilha, uma população inteira de cobaias complacentes. Eles acreditavam que se as mulheres porto-riquenhas pobres e sem instrução pudessem usar a pílula, qualquer uma poderia fazer o mesmo.

No começo, Rock e Pincus tiveram, mais uma vez, dificuldade em encontrar mulheres que tolerassem os efeitos colaterais da pílula. “Em Porto Rico, mulheres também desistiram do estudo, e então eles começaram a procurar por mulheres que poderiam forçar a participar, tanto nos Estados Unidos, quanto em Porto Rico”, escreve Ann Friedman na revista The New Republic. “Mulheres trancafiadas em manicômios foram colocadas no estudo. Estudantes da faculdade de medicina de San Juan, capital de Porto Rico, eram obrigadas a fazer parte dos testes ou seriam expulsas”. Mais uma vez, não disseram para o que a pílula servia e as mulheres tinham que se calar, tomar o remédio e se sujeitar a exames médicos frequentes e invasivos.

Por fim, a Dra. Edris Rice-Wray, diretora médica da Associação do Planejamento Familiar de Porto Rico sugeriu uma nova estratégia: informar as mulheres da finalidade da pílula. Assistentes sociais começaram a ir de porta em porta nos conjuntos habitacionais de San Juan explicando que a pílula poderia ser tomada diariamente para prevenir a gravidez. Quando foi explicado a elas o que a pílula fazia, centenas de mulheres se inscreveram para tomá-las. No entanto, tais mulheres não foram informadas de que faziam parte de um teste clínico ou que o tratamento estava em fase experimental.

Depois da conclusão do estudo, Dra. Rice-Wray relatou a Rock e Pincus que a pílula tinha sido 100% eficaz na prevenção da gravidez. Porém, 17% das participantes sofreram com efeitos colaterais como: “enjoo, tontura, dores de cabeça, dores de estômago e vômitos”.

Três mulheres morreram durante o estudo, mas autópsias nunca foram realizadas para verificar se foram as participações no teste clínico que as levaram à morte. Dra. Rice-Wray concluiu que a pílula, pelo menos na forma e dosagem que foi dada às porto-riquenhas, causava “reações adversas demais para ser aceita de modo geral”.

Isso não impediu a empresa farmacêutica G. D. Searle & Co. de lançar a primeira versão da pílula, a Enovid, com a mesma formulação que causou problemas a quase um quinto das participantes, durante o teste clínico. Enovid continha 10 vezes mais hormônios do que o necessário para prevenir uma gravidez.

Aliás, Pincus e os outros originalmente consideraram anticoncepcionais hormonais para homens. “A ideia foi rejeitada devido aos muitos efeitos colaterais”, diz Grigg-Spall, “incluindo encolhimento de testículos”. Acreditou-se que as mulheres tolerariam efeitos colaterais melhor do que os homens, que exigiam uma qualidade de vida melhor.

Em 1970, a jornalista Barbara Seaman escreveu “The Doctors’ Case Against the Pill” (“O caso dos médicos contra a pílula”). O livro detalhou muitos efeitos colaterais do Enovid – dados de casos em que os médicos sabiam deles, mas não informavam suas pacientes. O livro chamou a atenção do senador do Wisconsin, Gaylord Nelson.

“O senador Nelson queria que fosse aprovado um projeto de lei que garantisse o direito de saber das pacientes”, conta Cindy Pearson, diretora executiva da National Women’s Health Network (Rede Nacional para a Saúde das Mulheres). A pílula anticoncepcional foi o ponto de partida do senador para tornar a indústria farmacêutica e médica mais transparente com seus consumidores. Em janeiro de 1970, Nelson convocou audiências no Senado, a fim de investigar a ligação do uso da pílula com a diminuição da libido, depressão e formação de coágulos. Nenhuma mulher foi chamada para falar nas audiências. Membros do Coletivo para a Libertação das Mulheres, da capital Washington, lideradas por Alice Wolfson, protestaram contra a participação feminina nula nas audiências. “Temos que reconhecer que mulheres são excelentes ratinhos de laboratório”, Wolfson disse nas audiências. “Elas têm custo zero, comem sozinhas, limpam as próprias gaiolas, pagam suas próprias contas e ainda recompensam o observador do experimento. Nós não toleraremos mais essa intimidação feita por deuses em jalecos brancos, assepticamente conduzindo nossas vidas”.

Tais audiências do senador Nelson sobre a pílula levaram a uma grande diminuição da quantidade de hormônios nos contraceptivos orais, além da inclusão de 100 palavras sobre os potenciais efeitos colaterais, em todas as bulas das pílulas.

Embora agora seja fácil rir da longa lista de efeitos colaterais em potencial, enumerados ao final de todo comercial de remédios, foram aqueles que lutaram pela transparência sobre a pílula anticoncepcional, que nos deram o direito de saber dos riscos de cada remédio que ingerimos. Além disso, os testes clínicos de Porto Rico – eticamente condenáveis e profundamente racistas – acarretaram diretamente nos procedimentos de consentimento informado, que todas as pesquisas médicas são obrigadas a aderir até hoje.

Barbara Seaman e Alice Wolfson, que se conheceram durante as audiências do senador Nelson sobre a pílula, mais tarde fundaram juntas a National Women’s Health Network (Rede Nacional para a Saúde das Mulheres).

Hoje, Pearson pondera sobre a maneira que os anticoncepcionais hormonais moldaram sua organização e missão. “Contracepção é apenas um exemplo. Acreditamos que as mulheres devem saber tanto quanto quiserem”, Pearson diz. O novo estudo dinamarquês não mudou a opinião dela sobre contraceptivos hormonais.

“O risco da depressão se manifestava desde que as mulheres começaram a tomar a pílula”, ela diz. O que mudou é que agora há dados para embasar as vivências de muitas mulheres. “Faz sentido biologicamente e tem sido relatado por mulheres há 50 anos”.

Mas, se as mulheres têm relatado depressão como efeito colateral dos anticoncepcionais hormonais há 50 anos, por que só agora conseguimos dados concretos? “Boa parte disso é o desinteresse em questões da saúde da mulher no geral”, conta Grigg-Spall, que complementa ao dizer que estudar humor é complicado, “porque obviamente há muitos outros fatores envolvidos”.

Muitas das crítica ao estudo dinamarquês se baseiam na grande quantidade de outras variáveis envolvidas na aparição da depressão. Alguns criticam, apontando que o auge da depressão em adolescentes é motivado por problemas amorosos e não um desequilíbrio hormonal causado pela pílula. Outros dizem que alguns meios de imprensa interpretaram incorretamente as correlações relatadas, acreditando que elas fossem maiores do que são. Grigg-Spall elogiou os dados reunidos pelos cientistas dinamarqueses, especialmente porque a prescrição de antidepressivos era a medida da depressão, ela diz: “Eles analisaram dados, ao invés de pedir para que as mulheres se autoavaliassem”.

Pearson também ficou bastante entusiasmada com os dados dos dinamarqueses. “Deus abençoe os escandinavos pela assistência à saúde gratuita para todos e por manterem um banco de dados realmente bom”, diz ela. “As estatísticas deles fornecem indícios realmente importantes, que podem ser melhor investigados no futuro”. Um desses indícios que precisa ser investigado seria: por que contraceptivos com doses mais baixas de hormônio, como DIUs hormonais e anéis vaginais, estão mais correlacionados à depressão, do que pílulas de maior dose hormonal?

De acordo com Pearson, o objetivo de estudos como esse é fornecer a mulheres as informações que elas precisam para tomar suas próprias decisões sobre seus corpos e sua saúde. “Essas informações não deveriam ser acobertadas pelo receio de que mulheres tomariam a decisão errada, no fim das contas”, ela diz. “Confie que mulheres bem informadas tomarão boas decisões”.

Autora

Bethy Squires é dramaturga e comediante. Vive na cidade de Bloomington, Indiana. Twitter: @BethyBSQU.

*Imagem: ilustração de Eleanor Doughty.

Em homenagem ao aniversário de 100 anos da Planned Parenthood, a Broadly organizou um especial analisando a história e o futuro dos direitos reprodutivos. Leia todos os textos em inglês aqui.