A questão do aborto não é sobre convencer você

Texto de Liliane Gusmão para as Blogueiras Feministas.

Enquanto houver pessoas tecendo logos comentários e textos, acadêmicos ou não, querendo provar que o aborto seria uma questão moral e, que por isso, não é uma solução para o problema de saúde pública que o Brasil enfrenta — mesmo havendo mortes de 4 mulheres cis por dia, vítimas de abortos clandestinos e/ou de tentativas desesperadas de por fim a uma gravidez violentando brutalmente seus corpos ao inserir neles objetos e substâncias nocivas a sua própria saúde — o debate não vai andar.

O debate sobre o aborto não é para convencer as pessoas pró-vida do feto que o aborto não é um crime ou não é imoral. O ponto crucial na questão do aborto é salvar as vidas de mulheres que estão morrendo, enquanto você, do alto do seu pedestal acadêmico ou não, tece teorias absurdas para camuflar o que, em essência, é apenas misoginia internalizada e racismo descarado.

Sim, querida intelectual, religiosa e pessoa de bem que pretende salvar o mundo da imoralidade de se matar uma vida inocente. Estou falando com você, pessoa de bem que acha que pode embasar em fé, moralidade, ou teses filosóficas a sua misógina e o seu racismo. Enquanto houver milhares de mulheres, em sua maioria negras e pobres, morrendo no Brasil por falta de informação, cuidado, atendimento médico e aborto legalizado, você pode pegar sua religião, sua moralidade, seus estudos, suas teses filosóficas e enfiar onde quiser. Estou vendo que por baixo dessa camada de religião, de moralidade e de pseudo intelectualidade o que se esconde é apenas MISOGINIA E RACISMO.

Porque falar sobre o aborto e legalizar o aborto é necessário e urgente. Enquanto estamos discutindo para nos convencer da moralidade do aborto, mulheres que estão desesperadas e não querem estar grávidas estão morrendo, aos milhares, em sua maioria mulheres negras e pobres. E contra fatos não há argumentos. Independente do que a sua moral julga e da sua vontade em deslegitimar o aborto como uma escolha, o aborto acontece e está acontecendo.

Pare de se dar tanta importância. Essa escolha é e deve ser individual, íntima. Não será uma decisão sua, a não ser que você esteja grávida e não queira estar. Então, desumanizar mulheres, comparar a vida de uma mulher adulta com uma vida que não é viável a não ser dentro de um útero é sim misoginia. Comparar um feto de 3 meses com uma pessoa paraplégica é capacitista e absurdo. Tão absurdo que você não se dá conta que igualou pessoas que nasceram, respiram e pensam, que se locomovem e sentem, que estão vivas sem precisar de outro corpo para serem com um feto que existe dentro do útero de uma pessoa. Você percebe o quão preconceituoso ofensivo e nojento é esse pensamento? E você não hesita em publicar isso para os seus 100 mil seguidores na internet? Você reduz e desumaniza a vida das mulheres e das pessoas com deficiência ao fazer isso.

Sou feminista e não quero obrigar ninguém a abortar. Defendo e defenderei para sempre a autonomia das decisões das mulheres e o que se passa dentro do útero de uma pessoa não te concerne, a não ser que seja seu útero. Então, se você não está convencida que o aborto é uma escolha livre, se você não está convencida que o aborto é uma escolha ética, eu imploro, jamais faça um aborto. Mas mantenha suas teses filosóficas, suas crenças e sua moralidade FORA dos úteros alheios. Porque você é branca, escolarizada, tem o privilégio de ter um atendimento médico digno, mas há milhares de mulheres nesse minuto no Brasil que não tem nada disso. Mas elas devem ter o direito de poder escolher se querem ou não levar adiante a sua própria gravidez. Sim, elas devem ter o direito de controlar o que se passa dentro delas. E essa decisão deve ser individual e íntima, de cada pessoa que se encontra grávida sem desejar ter um filho no momento. Cada vez que alguém se levanta para questionar se essa escolha é válida, se essa escolha pode ser feita por uma mulher, o que faz essa pessoa questionar é apenas misoginia.

Acho que o melhor argumento que eu já li sobre o a descriminalização do aborto é um que explica autonomia corporal. Vocês sabem o que é isso?

Autonomia corporal é o direito que você tem sobre seu próprio corpo e sobre toda e qualquer decisão sobre ele. Cadáveres possuem autonomia corporal, que é transmitida para a família assim que é declarado o óbito. Mesmo que um cadáver tenha órgãos viáveis, compatíveis e exista uma pessoa precisando a 5 metros de distância, não pode haver doação sem autorização. Você pode literalmente se recusar a salvar uma pessoa que está morrendo, caso você não queira doar o coração do seu parente morto.

(…) No Brasil, cadáveres tem mais autonomia corporal do que mulheres grávidas. O cadáver pode salvar 30 vidas em um dia, mas não é obrigado. Você pode incubar uma por 9 meses, talvez nasça uma vida, talvez ele morra no caminho, mas você é obrigada a tentar E CEDER seu corpo inteiro ao estado. Parabéns mulheres, nós temos os direitos e autonomia de uma incubadora. Referência: Texto de Mariana Marineli. Publicado em seu perfil do Facebook no dia 01/12/2016.

Autora

Liliane Gusmão gosta de fotografia e mora no Canadá.

Créditos da imagem: Março/2016 – Mulheres fazem protesto no Rio de Janeiro pela legalização do aborto. Foto de Fernando Frazão/Agência Brasil.