Ser mãe não define o ser mulher

Texto de Lígia Birindelli Amenda para as Blogueiras Feministas.

O dia das mães se aproxima e com ele enfrentamos novamente a enxurrada de clichês sobre a maternidade. Os presentes ideais para as mães continuam sendo aqueles ligados à manutenção do lar, lugar onde se imagina que as mães devam estar.

A despeito do caráter mercadológico da data, é nesta época do ano que o imaginário social sobre o que é ser mãe fica mais evidente. Aquela que ama incondicionalmente, que é doce e dócil, que se sacrifica, que é recatada, que renuncia a si em prol dos filhos. A mulher maternal.

E é justamente essa a expectativa sobre a mulher: que ela seja maternal. Todas elas, sejam mães ou não. Como se a mulher fosse sempre um devir mãe. Como se a maternidade estivesse diretamente ligada ao destino de todas as mulheres.

As ditas características maternais são exigidas das mulheres até nas relações onde não há prole. Atribui-se o cuidado como função inata das mulheres. Nas relações heterossexuais, espera-se que elas cuidem de seus companheiros. No ambiente de trabalho, espera-se que elas sejam o suporte dos seus colegas homens. Cargos de chefia são dificilmente alcançados por elas. Elas são maioria entre as enfermeiras, secretárias, educadoras no ensino infantil e entre professoras do ensino primário. São elas que trabalham como babás e empregadas domésticas. E quanto mais feminino é considerado o trabalho, menos valorizado é seu reconhecimento social. Estamos em 2017 e ouvimos recentemente do nosso presidente que dentre as atribuições das mulheres estão os afazeres domésticos, o cuidado com os filhos e o controle de preços do mercado.

Essa ideia que vincula o feminino ao cuidado e, consequentemente, às funções maternais, acaba por definir a expectativa social sobre a mulher. O eufemismo “rainha do lar” é uma boa síntese da dicotomia entre público e privado que separa homens e mulheres. A elas todas as atribuições do espaço privado e a eles todo o poder do espaço público.

A maternidade é utilizada de maneira perversa para frear as mulheres. Em entrevistas de emprego, quando a elas se pergunta sobre a intenção de ter filhos, a resposta positiva é um problema porque se entende que os filhos devem ser prioridade na vida de uma mulher e não o trabalho. Enquanto que a visão muda perante uma resposta afirmativa masculina, pois se espera que o homem seja o provedor da família e, portanto, o trabalho seria priorizado em prol do sustento do lar. O homem, então, focado no trabalho enquanto sua mulher se dedica aos “afazeres domésticos” e cuidado com os filhos, acaba sendo preferido em cargos de chefia. A mulher que enfrenta dupla ou tripla jornada não tem a mesma energia para conseguir concorrer com seus colegas homens.

Aliando isso à realidade de que trabalhos femininos costumam ser menos valorizados que os masculinos, chegamos ao fato de que as mulheres ganham em média 30% a menos que os homens. Com essa conjunção de fatores, é economicamente evidente que se alguém tem que sacrificar seu trabalho pelo cuidado com os filhos, essa pessoa será a mulher. E assim faz-se um círculo vicioso: cria-se a ideia de que mulheres são cuidadoras naturais dos filhos, os homens tomam os espaços de poder e de representação, continuam falando e decidindo por nós, e a sobrecarga doméstica impede que as mulheres possam reverter esse cenário.

E se é no cuidado que esse entrave se inicia será justamente através dele que uma nova consciência sobre o ser mulher deve nascer.

Esvaziar o papel social da mãe e repensar formas de cuidado devem ser prioridades para uma mudança de estrutura.

Primeiramente, faz-se necessário abolir a figura iconoclasta que paira sobre as mães. Castidade e maternidade são adjetivos que se complementam apenas nas figuras maternas religiosas cristãs. Mães são antes de tudo, mulheres. E uma das formas de esvaziar o papel da mãe é desvinculando o ser mulher do ser mãe.

Também é preciso inserir outros atores nas funções de cuidado. Cuidar é e deve ser reconhecido com um gesto nobre e essencial à vida em sociedade. Atividades de cuidado, portanto, não podem estar ligadas ao gênero do cuidador.

E um primeiro passo para entender que o cuidado prescinde a presença feminina é instituir licenças parentais. Na Noruega, por exemplo, uma parte é destinada às mães e outra aos pais. Inserir e incentivar que homens participem da rotina de cuidado com os filhos é ver nascer uma geração que não associe o cuidado com as mulheres, ao mesmo tempo em que as tira da sobrecarga da exclusividade no cuidado. No mesmo sentido, é preciso que a educação infantil seja também construída com a participação deles.

Para além da responsabilidade dos genitores, é imprescindível que se reconheça a responsabilidade estatal sobre as crianças. Instituição de políticas públicas que insiram os homens no cuidado, como a criação de licenças parentais, apoio e acolhimento às mães no período puerperal, investimento na educação infantil valorizando os profissionais que atuem na área do cuidado, criação de espaços que propiciem o encontro de pais e filhos, são exemplos de como o Estado pode atuar ativamente nesta questão.

O direito à cidade também deve ser pensado para as mulheres e crianças. Da criação de áreas de lazer à iluminação pública. É dever do Estado garantir que as crianças façam parte da cidade. E como ainda é realidade que as crianças sejam cuidadas exclusivamente por suas mães, pensar a cidade para elas é também uma forma de inserir as mulheres no espaço público. Enfim, é preciso que as políticas públicas voltadas às crianças estejam pautadas em princípios que considerem o cuidado como coletivo e não como sendo exclusivo da mãe.

Para pensar na revolução do cuidado, o conceito de família também não pode permanecer intocado. Quanto maior o poder investido na família, maior é a violação dos direitos das mulheres e crianças. Ainda que a responsabilidade primária pela prole seja dos pais, a sociedade e o Estado devem também assumir essa função.

A família mononuclear expressa relações de poder, onde se estruturam formas de submissão e dependência. O homem que na maioria delas possui uma remuneração maior, fica responsável pelo sustento dos demais. A mulher, mesmo quando possui trabalho remunerado, costuma ter os filhos e a casa como prioridade. E os filhos acabam sufocados dentro de uma estrutura de sobrecarga e opressão.

Ouso dizer que a violência perpetrada contra mulheres e crianças é muito mais perversa dentro das famílias de classe média. Pois são justamente estas que estão fechadas em seus condomínios, escolas particulares e atendimento à saúde privada. O cuidado coletivo se impõe nas classes periféricas, havendo muito mais controle seja por parte da sociedade, seja por parte do Estado. E com isso não estou querendo negar que a vulnerabilidade causada por questões raciais e de classe deixem essas pessoas suscetíveis a violências. Mas estou dizendo que as violências realizadas dentro da privacidade do lar de uma família de classe média não possuem o mesmo eco que aquelas que ocorrem na periferia. Elas são abafadas de tal forma que se chega a duvidar que existam.

Luis Felipe Miguel traça essa distinção de forma bem clara no livro Feminismo e Política(1) quando cita palavras de Bell Hooks:

“Para as mulheres brancas e de classe média, a compreensão da família como estrutura de opressão é muito mais unívoca. Para negras trabalhadoras, porém, a família pode ser também o local em que ocorre ‘uma humanização que não é experimentada no mundo externo, em que nos confrontamos com todas as formas de opressão’”.

Entender a responsabilidade pelas crianças como algo coletivo é, portanto, urgente para que as mulheres possam ser além da maternidade e para que as crianças incorporem o sentimento de pertencimento à sociedade.

Elisabeth Badinter(2), filósofa francesa que se debruçou sobre questões envolvendo maternidade e feminismo, vincula a taxa de natalidade à pressão social por ser mãe. Segunda ela, quando maior a vinculação entre mulher e mãe, mais opressiva se torna a maternidade:

“Esse estado de espírito coletivo, ao mesmo tempo liberal e desculpabilizante, exerce certamente um papel positivo na decisão de procriar. Quanto mais se alivia o peso das responsabilidades maternas, mais se respeita a escolha da mãe e da mulher, e mais esta se dispõe a tentar a experiência, ou mesmo a renová-la. Garantir a maternidade em tempo parcial, que, no entanto, alguns consideram insuficiente e, portanto, culpada, é hoje o caminho ideal para a reprodução. Em compensação, exigir da mãe que ela sacrifique a mulher que existe nela só pode retardar ainda mais a hora da primeira maternidade e até mesmo desencorajá-la”.

Por acreditar que muito das opressões contra a mulher advém da atribuição social do papel da mãe e de como encaramos o cuidado com as crianças, é que neste dia das mães, eu desejo que toda mulher possa escolher a maternidade, que ela não lhe seja imposta nem que seja vista como condição do ser mulher. Desejo que o cuidado seja coletivo para não gerar sobrecarga e que aqueles que desejem cuidar, o façam por amor e não por uma pressão social. Porque participar ativamente da criação de uma criança é tarefa por demais importante para que seja subvalorizada e menosprezada.

Desejo que a maternidade nunca seja um fardo, mas sim uma experiência terna. Lembrando as palavras de Simone de Beauvoir(3): “que nada nos defina, que nada nos sujeite, que a liberdade seja a nossa própria substância”.

Referências

(1) Miguel, Luis Felipe. Feminismo e Política: uma introdução. Luis Felipe Miguel, Flávia Biroli. 1. Ed. – São Paulo: Boitempo, 2014. P. 85.

(2) Badinter, Elizabeth. O conflito: a mulher e a mãe. Tradução de Vera Lucia dos Reis – Rio de Janeiro: Record, 2011.

(3) Beauvoir, Simone de. O Segundo Sexo: 1. Fatos e Mitos. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira S.A., 1980. Terceira Edição.

Autora

Lígia Birindelli Amenda acredita que o papel de mãe tal qual como está posto precisa ser repensado e esvaziado em prol das mulheres e de seus filhos. Segue aprendendo e refletindo sobre feminismo, maternidade, cuidado e infância. Escreve na plataforma Cientista que virou mãe e no blog No princípio era a Maternidade.

Ilustrações de Thaiz Leão, 27, mulher, mãe, feminista e ativista. É Designer e ilustradora, as duas coisas necessariamente se confundem. Desde 2014, ano em que seu filho nasceu, desenha e disserta de maneira franca e não romantizada sobre a treta que é ser (ou não ser) mulher e mãe em tempos de babycenter e yahoo answers para o seu projeto Mãe Solo. Também é autora do livro Chora Lombar – Maternidade na Real, financiado coletivamente em 2016.