O que todas as ‘Divas’ brasileiras precisam investigar: para que(m) serve o teu conhecimento?

Texto de Tati Andrade para as Blogueiras Feministas.

Lamentavelmente, desde o início da educação no Brasil-colônia a instrução não incluía as mulheres. A história conta que, mesmo quando foi permitido que elas frequentassem a sala de aula, eram somente ensinadas técnicas manuais e domésticas. Nesse período, educar era um ato pedagógico coercitivo, baseado na ação bruta da obediência severa e algo restrito ao sexo masculino. Em linhas gerais podemos afirmar que na formação da sociedade brasileira, as mulheres, assim como outras camadas sociais desprotegidas, estiveram apenas a serviço dos “donos do poder”. Esta ignorância era imposta de forma a manter o sexo feminino subjugado desprovendo-o de conhecimentos que lhe permitissem pensar em igualdade de direitos.

Além de ter uma representação social de inferioridade perante o homem, é possível observar uma luta imposta entre mulheres de mundos e situações econômicas diferentes. O preconceito instalado impregnava o imaginário através de contos, versos, poemas transmitidos oralmente pela colônia. Assim, a literatura era um instrumento de reprodução a favor da hegemonia dominante que veiculava o status de ser branca a sua condição social privilegiada. É daí que vem o sentido pejorativo atribuído às mulheres negras. Elas eram vistas como espertas, sedutoras e malvadas. As moças brancas como ingênuas e sem maldades.

Essas mulheres de condição inferior, índias, negras, e até mesmo brancas empobrecidas, carregaram sobre si a imagem da promiscuidade e ignorância, pois, se a maioria das mulheres brancas de elite era considerada casta, isso só foi possível devido à prostituição e ao abuso, em todos os sentidos, das outras mulheres, que, submissas e de condição social inferior, tornaram-se prisioneiras dos desejos sexuais dos senhores. Dessa forma, tanto as mulheres brancas como as outras mulheres, aprendiam, através de suas experiências de vida, os conhecimentos necessários a suas representações dentro da sociedade, ficando de mãos atadas diante do pensamento dominante e sem conseguir vislumbrar maneiras de rompê-lo.

Felizmente, com a vinda da Família Real para o Brasil, houve uma mudança na situação cultural da colônia e, particularmente, na concepção e na oferta de ensino para mulheres. As ideias liberais que começaram a circular desencadearam o Ato Adicional de 1834 e Reforma Couto Ferraz, de 1854 (criação do ensino Primário e o Secundário). Depois disso, as mulheres começaram, lentamente, a ter acesso à instrução das primeiras letras, mas eram desobrigadas de cursarem o ensino secundário, visto que o mesmo tinha a função de preparar os homens para o ensino superior. Com as transformações que ocorriam no terreno das ideias, em função das diversas correntes de pensamentos europeias, as mulheres, através da educação, passaram a ter acesso à esfera pública.

No que se refere à mulher negra, nem a vinda da família real, nem o fim da escravidão, deu a ela liberdade ou direito à educação. Vivendo na precariedade, sem qualquer compensação por parte do Estado, sem os direitos que as brancas tinham, as possibilidades de sobrevivência vinham de trabalhos sub-humanos, além de moradias em zonas periféricas e humilhações de todo tipo. Ou seja, o racismo institucionalizado e expresso nas relações sociais foi a herança passada às gerações, o que se repercute, até hoje, material e subjetivamente, na reprodução de desigualdades.

Diva, um adjetivo feminino!

Olhando para esse passado, fica mais fácil compreender a emoção e revolta na fala de Dona Diva Guimarães, professora aposentada de 77 anos, durante a 15ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). A professora paranaense se definiu aos jornalistas como uma “sobrevivente pela educação”. Nascida em Serra Morena, no norte do Paraná, neta de uma escrava com um português e filha de uma lavadeira que trabalhava até mesmo de graça, apenas em troca de material escolar para a filha, Diva tomou coragem ao pegar o microfone e relatou uma vida de dificuldades impostas pelo racismo e pela intolerância.

Formada em educação física, contudo, uma apaixonada por literatura, ela foi convencida pela família em ir à FLIP. Lá, Diva não se conteve ao ver Lima Barreto homenageado, ao ouvir a fala do Edmilson Pereira (autor que abordou a questão racial), ao conhecer a história da autora Scholastique Mukasonga (que perdeu toda sua família no genocídio), diante da possibilidade de estar próxima a Conceição Evaristo (uma de suas autoras negras preferidas) e ao ouvir as falas da mesa redonda de Lázaro Ramos e a jornalista portuguesa Joana Gorjão Henriques abordando as consequências da colonização portuguesa no Brasil para os descendentes de escravos. Certamente, ela não poderia imaginar que seu discurso improvisado a tornaria o maior destaque do festival, ofuscando até mesmo os autores, atores, jornalistas e demais personalidades convidadas.

De cabelos curtos presos em tranças, tímida, com a voz já enfraquecida pela idade, tremendo pela coragem repentina que lhe fez erguer o dedo e pedir a fala, a professora se libertou e, naquele momento, pôde dar voz a sua mãe, sua avó e a seus antepassados que sofreram os mais terríveis males da escravidão.

Entre outras verdades doídas, Diva lembrou que “se o branco é 100%, o negro tem que ser 1.000%. Tem que estar muito acima para se igualar. A saída é essa: ler, estudar muito para conseguir driblar a situação”. Ela declarou ainda que, quando era mais nova, sofreu preconceito de forma explícita e que, atualmente, continua sofrendo o mesmo absurdo, mas de forma velada.

Emocionada, contou que foi alfabetizada num colégio interno que tinha uma tradição no Paraná, na época das missões, onde as freiras passavam e recolhiam as crianças e as pessoas com mais idade em troca de estudo. A coisa, segundo ela, funcionava assim: a Igreja dava educação, as crianças, em paga, trabalhavam para a instituição. Tudo muito mascarado de boas intenções. Ela lembrou que levou muita surra, “apanhei demais e sofri muita humilhação por ser negra […] havia outros negros na instituição, mas eu apanhava mais porque era rebelde”. Aos 21 anos, Diva pegou um trem que demorou 24 horas para chegar a Curitiba. Lá, passou frio com uma manta “corta febre” – “dessas que o prefeito de São Paulo anda distribuindo para os mendigos da cidade” – arranjou trabalho, estudou, entrou no curso de educação física na Universidade Federal do Paraná. Foi a única negra da instituição. Virou “cobra” no atletismo, jogou basquete, arremessou peso, nadou, formou-se. Tornou-se professora. Nunca esqueceu os sofrimentos e humilhações do colégio interno.

Olhando para as memórias da professora aposentada Diva e para a educação pública no Brasil, vemos que a história de vida dela é o reflexo do próprio Estado brasileiro. Nosso passado é marcado pela intervenção da Igreja, que por consequência, influenciou na segregação das escolas por sexo, depois pela escravidão que excluiu da esfera educacional a população negra, pelo poder público se comprometendo com as oligarquias e fazendo pouco caso da democratização do ensino, por uma educação dual (intelectual para a elite, mecânica para pobres).  Essas desigualdades deixaram marcas profundas no sistema educacional da atualidade. Temos algumas gerações que, através da sala de aula, aprenderam a reproduzir (pré)conceitos e moralidades duvidosas, impregnadas de uma falsa moral e verdades jamais questionadas ou discutidas, sendo reproduzidas sistematicamente por toda a trajetória que conhecemos e que, assim como a Diva, muitos de nós trilhamos.

Tiramos da fala de Dona Diva que o racismo, de fato, está também nas salas de aula. Ele reside em mentes adormecidas pela alienação que limita a percepção de que as diferenças existem e devem ser respeitadas e naturalizadas como aquilo que une e não que separa.

Mesmo agora, com a promulgação da Lei nº 10.639/2003 (para que as escolas passassem a ensinar história e cultura afro-brasileira, incluindo temas como história da África e dos africanos, a luta dos negros no contexto brasileiro e sua contribuição nas diversas áreas da história e da cultura do Brasil) e da Lei nº 12.711/2012 (garantindo a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas 59 universidades federais e 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos), vemos que os preconceitos da sociedade, o descaso e a precariedade do ensino público não permitem que os erros passados sejam corrigidos de maneira efetiva.

Mesmo com certos avanços na legislação brasileira no que se refere a uma educação igualitária, são as faculdades particulares as principais responsáveis pelo acesso de brasileiros ao ensino superior. Mesmo com as políticas de cotas, são medidas como o ProUni e o FIES que estão preenchendo uma lacuna do sistema público, impactando não apenas nas questões sociais, como também raciais e de gênero.

Pensar na qualidade do ensino público é pensar numa reforma estrutural, em que devem ser quebrados os alicerces arbitrários a que o Brasil sempre esteve submetido e que fez muito mais estrago no inconsciente coletivo da população do que supomos. É só olhar para o número de “Divas” que temos no Brasil e que infelizmente não obtiveram uma história de sucesso como a nossa professora paranaense. O modelo de ensino obsoleto e opressor, que não foi feito para educar e sim para doutrinar pessoas, aliciando seu poder de escolha e relegando ao raciocínio apenas o alcance básico para o controle do crescimento econômico e mal distribuído da sociedade, precisa, definitivamente, ter fim.

Além disso, ainda há números elevados de baixa escolarização para a população toda, em especial para mulheres e homens negros. Estudos recentes (Dossiê Mulheres Negras do IPEA) indicam que as desigualdades de gênero, deixam a sua marca, de forma que as mulheres negras têm alcançado maior escolarização se comparada aos homens negros. Entretanto, as hierarquizações estão claras: o ensino superior brasileiro é composto majoritariamente por mulheres brancas, seguidas dos homens brancos, só depois, pelas mulheres negras e, por último, homens negros. É evidente que a questão socioeconômica tem um peso crucial aqui, ajudando a entender por que as desigualdades raciais são sustentadas pelo, historicamente cultural, processo de escurecimento da pobreza.

Se voltarmos a história da vida de Dona Diva, veremos que, assim como um famoso personagem de Machado, ela optou por não se casar e nem ter filhos. Enquanto que ele, o personagem, ciente de si e do mundo, diz: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”, Diva também afirma que essa foi uma opção para um mundo que ela considera muito intolerante. “Eu fui percebendo as coisas, amadureci muito cedo […] Eu não teria filhos para passar pelas mesmas coisas que eu passei”. Da mesma forma que o personagem de Machado de Assis, um autor que era negro, vivendo no período escravista, a professora é uma testemunha real de uma sociedade com interesses cristalizados que (re)produz convicções escravocratas arraigadas, força a existência dos estereótipos, fazendo com que jovens negras (e negros) acreditem no senso comum transmitido, inclusive pela escola, de que o lugar da pessoa negra não é a vida acadêmica ou numa situação de prestígio.

Ao voltarmos a FLIP, vemos Lázaro Ramos, arrancando risadas e aplausos, no início de sua fala: “Tô muito feliz de ver essa plateia cheia de brancos […] A questão do racismo não é só uma questão de negros. Não é, não pode ser e não deve ser”. Mais tarde, quando pega o microfone, Dona Diva completa a fala de Lázaro: “Eu também estou muito feliz por ver a maioria de brancos aqui nessa plateia. No entanto, a gente teve uma libertação que não existe até hoje […] Fui a primeira pessoa da minha família a ter acesso a escola. Isso fez com que despertasse cedo para a minha condição”.

Lázaro e Diva estão certos, nem o racismo e tampouco a real democratização se dará sem uma luta em diversas frentes por todos os participantes da sociedade, sejam negros, brancos, índios. A conquista de melhores condições na educação, especialmente para as mulheres negras, depende da solução de diversos problemas que vão desde a reforma agrária até o fim da violência policial e do sistema prisional. Enquanto obstáculos como a falta de moradia, o genocídio da população negra, principalmente de sua juventude, seu encarceramento, a necessidade de trabalhar muito jovem, a ocupação dos cargos mais precarizados, existirem, negros e negras continuarão inalteravelmente sem acesso.

Antes de se despedir e depois de ter chorado diante de todos lembrando-se de sua história, a professora aposentada conclui: “Eu tinha que falar. Em nome do povo negro e da hipocrisia que existe no brasileiro que afirma que não existe racismo no país”. Entretanto, com a persistência e esperança de uma sobrevivente, no auge de seus 77 anos, Diva nos acode: “Nós, adultos, já temos determinados vícios, determinados ranços. É muito difícil você modificar um adulto […] A chance de mudança está na juventude”. Diva nos mostra um possível caminho dizendo que são os jovens que, como cidadãos atuantes num país pluriétnico e multicultural, poderão ajudar a desconstruir os mitos de inferioridade e superioridade entre culturas, reduzindo as injustiças e emancipando muita gente que aprendeu a ver o mundo através de lentes distorcidas.

Referências

RIBEIRO, Arilda Ines Miranda. Mulheres Educadas na Colônia. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FILHO, Luciano Mendes de Faria; VEIGA, Cynthia Greive (Orgs.). 500 Anos de Educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2000, p. 79-94.

TOMÉ, Dyeinne Cristina; QUADROS, Raquel dos Santos; A educação feminina durante o Brasil colonial (.pdf). In: Anais da Semana da pedagogia da UEM, 1, 2012, Maringá.

MELNIKOFF, Ricardo André Aires; MELNIKOFF , Elaine Almeida Aires. Professora, professorinha primeira profissão que legitima a mulher do século XIX (.pdf). In: IV Congresso Sergipano de História & IV Encontro Estadual de História da ANPUH/SE o Cinquentenário do Golpe de 64. Out, 2014.

BOAS, Mariana Vilas. As lutas das mulheres negras pelo direito à educação.

BERTH, Joice. O roteiro do racismo na educação.

Estatísticas de Gênero mostram como as mulheres vêm ganhando espaço na realidade socioeconômica do país. Censo 2010.

Autora

Tati Andrade é beletrista formada pela Universidade Federal do Paraná com mestrado em aquário. É educadora há mais de 10 anos e leciona para todas as séries, do Ensino Fundamental II ao Ensino Superior. Passa grande parte do tempo pesquisando a respeito dos laços, enleios e deslindes entre Literatura, Questões de gênero e Educação enquanto acaricia uma pinscher, come paçoca, toma chimarrão e lê “textões” de mulheres e sobre mulheres.

Créditos da imagem: Diva Guimarães, professora aposentada durante a Flip 2017. Foto de Bruno Santos/Folhapress.