Como minha avó contribuiu para o meu feminismo

Texto de Débora V. Oliveira para as Blogueiras Feministas.

Desde que me lembro de mim, ouvia histórias que pairavam no ar sobre a violência do meu avô, como batera durante décadas, desde o início do casamento, na minha avó, por ciúme, “porque a amava muito”, ouvi muitas vezes. “Ela era tão bonita…”, que talvez ele tivesse medo de a perder, pensavam. Batera também e indiscriminadamente nas filhas e filhos, quando não correspondiam ao seu quadro de valores.

Ele nunca me bateu, nunca gritou comigo, nem precisou, pois o terror familiar velado era tal, que eu sempre me comportei, nunca falhei em nada, não fazia barulho. Podem pensar que ele era um monstro, mas eu não o via assim, nem vejo hoje. Sabe… é que o problema de demonizar os agressores não ajuda em nada a causa, eles são apenas pessoas, com características positivas e negativas, fazem também coisas boas, como más. A questão aqui é a seguinte: são seres humanos que com as suas coisas más danificam irreversivelmente outros seres humanos, que, à luz da atualidade, cometem CRIMES e devem ser responsabilizados social e juridicamente por isso. Não importa se são “boas pessoas”, se “ninguém diria…”, se praticam a caridade… Num dado momento violaram o espaço mental e físico da outra pessoa e ultrapassaram o penúltimo limite da condição humana, o último será obviamente o homicídio/feminicídio.

Quando eu nasci ele já não lhe batia, mas chegou a espancar as filhas adolescentes, como espancou friamente os filhos mais velhos durante décadas, quando estavam sob a sua alçada, porque, mais uma vez, não foram de encontro ao seu quadro de valores.

Ela era a criatura mais bondosa que eu tive oportunidade de conhecer. Numa análise superficial, poder-se-ia dizer que ela era submissa, que devia ter fugido quando era nova, que incentivava outras mulheres a “aguentar”, como ela também tinha aguentado (como lhe ensinaram desde tenra idade). Mas eu vi mais do que isso.

É preciso dizer que ela nasceu e viveu num tempo em que não era possível nenhuma dessas soluções, em que estava completamente dependente financeiramente. E, para além de tudo isso, ela amava-o e, infelizmente, acreditava que o amor era mais importante.

Como disse antes, eu vi mais do que isso, eu vi uma mulher que dentro de todas as limitações contextuais, culturais, sociais, disse sempre o que pensava, mesmo que isso implicasse ser batida, mesmo que isso implicasse ser psicologicamente abusada, como eu assisti muitas vezes com os meus 4, 5 ou 6 anos. Que professou sempre aquilo em que acreditava até à morte, que cedeu em muito mas nunca nos seus ideais pessoais, custasse isso o inferno que custasse. Dizia o que pensava, não importa agora se eu concordaria ou não com ela, o que interessa é que ela era corajosa, valente e defensora dos seus ideais. Sei que ela nunca se iria considerar feminista, até porque as suas crenças religiosas nunca o permitiriam, mas foi isso que eu vi ali.

A minha avó sofreu muito, teve uma vida muito difícil e cheia de obstáculos, por isso foi adoecendo mentalmente e, de quando em vez, tinha crises muito graves. Em algumas dessas crises, já bem mais velha, ela finalmente revoltou-se contra ele. Falou mal dele a toda a gente, falou-lhe mal abertamente e, eu diria, permitiu-se odiá-lo. Acredito que, quando não é possível por diversas variáveis, colocar fora o que fervilha por dentro, a loucura pode, por vezes, instalar-se para permitir uma espécie de catarse, menos saudável para o próprio, é certo, mas ainda assim uma catarse. As pessoas diziam que ela estava louca, mas eu sentava-me e ouvia-a, entendia-a, mesmo com os poucos recursos de adolescente que tinha. Tive orgulho dela.

É verdade que isto não é um statement político, é mais uma história então tantas, tantas, tantas… Mas o que eu quero realmente contar-vos é que a luta das Mulheres, o Feminismo, a Igualdade, acontecem de diversas formas, dependendo do século, da década, do contexto sociocultural de base, das limitações da realidade de cada pessoa. É preciso respeitar isso, dialogar com isso e encontrar um verdadeiro espírito de sororidade.

Sou feminista desde pequena, eu acho. Lembro-me de ter 8, 9 ou 10 anos, agora não consigo precisar, e ver a minha tia a ser empurrada com a primeira filha, recém-nascida, ao colo, enquanto o estupor gritava com ela. E eu soube com toda a certeza naquele preciso instante que aquilo era errado, estúpido e grave. Ninguém tinha me dito e não havia na escola sessões de prevenção, nem havia campanhas. Aliás passei a infância a ouvir como o homem é o varão da família e a dirige, é quem manda, etc. Mas soube, porque vi na minha tia medo, sofrimento, necessidade de proteger a filha e isso só pode acontecer quando algo está muito errado. Por isso, eu sou feminista mesmo antes de saber que a palavra existia.

Só que eu sou feminista e tenho uma filha, sou mãe e não me sinto presa ou que tenha menos possibilidades de lutar por isso. A minha filha para mim não é uma prisão, é o futuro, sei que ela vai fazer melhor do que eu, vai ter mais condições e mais claridade. Sou feminista e já estive economicamente dependente de um homem durante largos períodos de tempo, não me caiu nenhum braço por isso, foi necessário e a realidade molda também as nossas ações e escolhas. Sou feminista e trabalho numa instituição dirigida exclusivamente por homens; adoro que assim seja? Não! Mas a realidade não só molda as nossas ações, como sinto que quero fazer o meu melhor como mulher e pelas mulheres em cada contexto, mesmo quando é mais difícil.

Vejo por toda a parte lutinhas que não têm por base a sororidade, mas a competição, a catalogação e a falta de empatia. Sobre como é que se é mesmo feminista, a melhor forma de o ser, que a pessoa X ou Y não pode ser considerada feminista, porque fez isto ou aquilo. Que a figura pública X ou Y, que pariu há pouco tempo já anda a fazer ginásio e isso faz com que as mulheres com menos condições econômicas que não se sentem bem com o seu corpo fiquem mal, isso é opressão. Que temos de votar sempre, mesmo que sejamos anarquistas e não acreditemos nesse tipo de organização do sistema, porque lutaram para que o pudéssemos fazer (lutaram para termos escolha, anteriormente só os homens podiam escolher votar ou não votar!) E outras coisas mais… NÃO!

Eu sou feminista porque eu quero que todas as mulheres no mundo tenham escolha(s), o que actualmente não acontece! Eu quero escolher livremente. Não quero passar do patriarcado para uma outra filosofia mais feminina, mas que também me vai oprimir, não é nada disso!

EU SOU FEMINISTA PORQUE QUERO TER ESCOLHA E QUERO AGIR A MINHA ESCOLHA LIVREMENTE (sempre tendo em conta a dialéctica entre o meu bem e o bem comum). Quero que a minha filha tenha ainda mais escolha do que eu, como eu tenho mais escolha do que a minha avó teve.

Autora

Débora V. Oliveira tem 31 anos, é formada em Psicologia Clínica e trabalha na área social. Atualmente é responsável pelo Grupo de Empoderamento de Mulheres e tenciona passar uma boa parte do resto sua sua vida a apoiar mulheres em situação de violência.

Créditos da imagem: cena do filme “Moana – Um Mar de Aventuras” (2016). Tala, a avó de Moana conversa com a neta.

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