Nós não somos todas Marielle

Texto de Jussara Oliveira.

E este é o ponto.

Eu sei que dói, e quanto dói, ver alguém que partilhava dos mesmos ideais que a gente tendo a vida arrancada através tamanha violência. Alguém que buscava ser a porta voz da luta por um mundo mais justo, que abraçava diversas pautas que não eram apenas dela, sendo executada com tamanha certeza de impunidade.

Mas nós não somos todas Marielle.

Amigos e amigas minhas a conheceram, trabalharam junto com ela, estavam assistindo ao evento que ela participou um pouco antes de tudo que ocorreu, conversaram com ela, conheciam a família e minha vontade de abraçá-las não cabe em mim.

Mas nós não somos todas Marielle.

Sei que muitas compartilham do mesmo sentimento de nó na garganta, estômago embrulhado, impotência. Muitos choros, silêncios e gritos simbolizam esse lutos em diversas partes do Brasil e do mundo.

Mas nós não somos todas Marielle.

Marielle era uma mulher negra, ativista, vereadora, socióloga, que foi mãe adolescente, cresceu na Maré (um dos maiores conjuntos de favelas do Rio de Janeiro), casada com uma mulher e que defendia direitos LGBTI. Trazia em seu corpo, em seu coração e sua na garra muitas lutas com as quais nos identificamos e podemos até viver algumas na pele.

Mas nós não somos todas Marielle.

Muitos ativistas que têm composto a linha de frente na luta pelo direito das minorias no Brasil têm sido mortos e essa notícia não é de hoje. Muitas mulheres que ousam se insubordinar morrem com requintes de crueldade nesse país. Pessoas negras sofrem com o extermínio sob a benção do estado.

Mas nós não somos todas Marielle.

Esta mulher corajosa como foi, morreu exatamente por lutar para que pessoas negras, pobres, periféricas não sejam desumanizadas, tratadas com descaso e sejam vistas como os indivíduos que são. Morreu por ter sido quem foi, e lutado pelo que lutou e onde lutou.

Nós não somos todas Marielle.

E temos que ter isso em vista ao escolher as pautas pelas quais nos mobilizamos, ao olhar para o lado e observar quem são aqueles que se dizem companheiros de luta e ao reivindicar certos espaços. Os assassinatos de Marielle Franco e de Anderson Pedro Gomes simbolizam muito o momento pelo qual o Brasil e o Rio de Janeiro em especial estão passando, mas simbolizam mais ainda a força de um estado que não reconhece pessoas negras e pobres como passíveis de ter o mínimo de dignidade. Simbolizam a história de um país que foi construído com o suor, sangue e sobre os ossos de pessoas negras e indígenas que foram escravizadas.

Foi sim um crime político, um aviso, mas foi também um crime de ódio.

Tantos tiros dados na cabeça de alguém demonstram o tamanho do desprezo por uma pessoa que veio de uma origem tão humilde e ousou denunciar a violência institucionalizada. A certeza da impunidade ao atacar alguém, que ainda que estivesse em uma posição de visibilidade, fazia parte de grupos extremamente vulneráveis.

Nós não somos todas Marielle.

Precisamos conhecer os sonhos e angústias daqueles cujos interesses dizemos defender. Pessoas negras, pobres, LGBTI e periféricas não podem mais continuar sendo tratadas como uma massa homogênea, inerte, manipulável e descartável das quais pessoas brancas cheias de privilégios, inclusive da esquerda, tiram proveito como e quando bem entendem.

Nós não somos todas Marielle, Luana ou Claudia, mas isso não nos impede de continuar buscando reconhecer nossas diferenças, limitações e possibilidades e apoiar a luta contra a violência à que pessoas pessoas como elas estão expostas.

Nós não somos todas Marielle.

Mas vamos fazer sua voz ecoar, sua luta valer, sua história perdurar.

Esse texto foi publicado originalmente em seu perfil no Facebook em 15/03/2018.

Créditos da imagem: Rio de Janeiro – Março/2018. Manifestantes se concentram diante da Câmara dos Vereadores onde foi velado o corpo da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ). Foto de Jotta de Mattos/Estadão Conteúdo.