Texto de Thaís Lopes para as Blogueiras Feministas.
Os acontecimentos recentes no Brasil – e, mais especificamente, no Rio de Janeiro – reacenderam o debate sobre Direitos Humanos. Não raro encontramos publicações contrárias ao tema nas redes sociais e, uma vez que somos todos humanos (e, portanto, beneficiários destes direitos), para muitos isso não parece fazer sentido. Geralmente, se opor aos Direitos Humanos nada mais é do que expressar um entendimento confuso de sua função – por exemplo, achar que servem para “defender bandidos”. A intenção deste texto é trazer alguma luz para ambos os lados deste debate, simplificando o diálogo sobre o tema e desmistificando associações irreais sobre o papel de agentes defensores dos direitos humanos.
Brevíssima história dos Direitos Humanos
A definição mais genérica (e honesta) dos Direitos Humanos aparece nos tratados internacionais como “direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição”. Logo, por definição, se você é humano – seja lá qual for o seu sexo, a sua cor, a sua religião, etc. –, os Direitos Humanos existem para protegê-lo.
Os Direitos Humanos englobam o direito à vida, à liberdade (inclusive de expressão), acesso a trabalho, educação, saúde, etc. Trocando em miúdos, é um acordo pelo qual determinamos que todos precisamos de um mínimo para viver em paz, com dignidade. Todos mesmo. Porque, vale reforçar, estes direitos independem de “raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição”.
Com o fim da Segunda Guerra, em 1945, percebemos (enquanto humanidade) algo muito importante: com as tecnologias de extermínio e as atrocidades vividas em períodos bélicos, podemos acabar nos exterminando a todos. A partir desta compreensão, nasceu uma série de iniciativas para apaziguar conflitos, diminuir os efeitos do ódio entre opositores e reduzir o sofrimento humano, inclusive em zonas de guerra. Assim, os Direitos Humanos foram acolhidos por muitos países.
Cadê a turma dos direitos humanos na hora de proteger o cidadão de bem?
Os direitos operam conforme as leis vigentes em cada país e são para todos, para garantir as condições básicas da dignidade humana. Se um cidadão violar os meus direitos, devo recorrer à Justiça. Justiça aqui foi escrito com J maiúsculo porque se refere à legislação do país e às vias jurídicas. É importante diferenciar isto porque “fazer justiça com as próprias mãos” implica em violação dos Direitos Humanos também (não permitindo que o suspeito seja julgado ou cumpra pena). Logo, que fique claro: a lógica do “olho por olho” é crime nos direitos humanos. Afinal, como vimos no início deste texto, esta é uma noção criada na tentativa ambiciosa de erradicar a guerra. Este é, certamente, um objetivo complexo e desafiador. Mas de uma coisa temos certeza: não há como reduzir a violência punindo agressão com mais agressão.
É importante salientar que os Direitos Humanos são, principalmente, um compromisso do Estado com os cidadãos. É dever do Estado me proteger de acordo com suas leis. Mas se o Estado se omite, ele também viola os seus direitos humanos. Neste caso, é preciso pedir amparo em maior escala.
O que o cidadão deve fazer caso seja violado e não seja amparado pelo Estado? Neste caso, pode-se recorrer à corte Interamericana de Direitos Humanos, entidade capaz de aplicar sanções ao Brasil, incitando-o a cumprir com o disposto no tratado do qual o país é signatário. Um precedente famoso é o caso de Maria da Penha, vítima de violência doméstica que se tornou paraplégica após a agressão do marido. Por não encontrar amparo legal na legislação brasileira, Maria da Penha entrou com um processo na corte Interamericana contra o Brasil e, como resultado, surgiu a lei de proteção à mulher que leva o seu nome.
Ninguém defende o policial?
Enfatizamos bastante que os Direitos Humanos são universais, para todos. A Human Rights Watch, uma das organizações mais proeminentes no tema, defende abertamente os policiais militares brasileiros, expondo as diversas ameaças a que estão expostos. Temos a polícia que mais mata e a que mais morre no mundo. O policial vive com medo de ser reconhecido e sofrer retaliação, sob constantes ameaças de morte, com um salário ruim e muitas pressões. Sua família, aliás, também sofre com os riscos e a insegurança dessa profissão. Tudo isto colabora para que a polícia, em situações tensas, aja por impulso defensivo. A letalidade e a agressividade geral das forças armadas impossibilitam a criação de uma relação de confiança entre as forças policiais e a população.
Esta situação está longe do ideal e certamente entra na pauta de defesa dos direitos humanos, conforme apontado pela Human Rights Watch e pela própria Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, da qual Marielle Franco fez parte. É preciso melhorar a condição de trabalho e de vida dos policias e de suas famílias.
Mãe de policial assassinado relembra ajuda de Marielle Franco no caso: ‘Foi imbatível’. Rose Vieira recebeu auxílio da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, da qual a socióloga foi assessora. ‘Ela fez por muita gente, para família de policiais’.
A polícia aparece como violadora porque suas ações representam o Estado. Conforme explicado no início do texto, os Direitos Humanos são assegurados a nível nacional unicamente pela atuação do Estado. Porque a polícia é um dispositivo de governo, suas operações são legitimadas, autorizadas e sancionadas pelo Estado. Assim, acabam servindo como um termômetro preciso da situação dos direitos humanos no país.
Direitos Humanos só protegem bandidos?
Imagine a cena: um trabalhador é violentamente assaltado na saída do escritório. Um pedestre no entorno, por vingança, mata o assaltante. Outra pessoa, ao ver o homicídio, tira a vida do primeiro assassino, tornando-se homicida também. E assim seguimos: olho por olho, dente por dente, crime por crime.
Não há dúvidas de que a lógica punitivista do sangue não é sustentável e, quando levada a um extremo, implicaria em um caos social. Por isso, temos o entendimento de que é o Estado quem deve punir o criminoso de acordo com as leis do país e com respeito aos direitos humanos.
Infelizmente, isto não é o que acontece no Brasil. Aqui, decretar a prisão de um cidadão comum (sem cela especial ou qualquer “regalia”) é a sentença a uma vida totalmente desumana. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, com celas superlotadas, condições subumanas de higiene e total ausência de projetos efetivos de reintrodução do criminoso à sociedade. O contexto de extrema precarização, inclusive com o salário insuficiente dos funcionários, torna-se facilmente corruptível. E como alguém pode sair com menos raiva da prisão? Como volta ao mercado de trabalho sem perspectivas, estudo ou experiência?
Os Direitos Humanos partem do princípio de que punição justa é aquela prevista na lei. E, mais ainda, de que é preciso respeitar a dignidade humana nos processos punitivos: são necessários julgamentos justos, condenações razoáveis, condições adequadas de sobrevivência e projetos de reabilitação do criminoso. Só assim, com capacitação profissional, assistência psicossocial e dignidade é possível pensar em reduzir a reincidência no crime.
Parece um modelo utópico e de fato é uma realidade bem distante do contexto brasileiro, onde os padrões penitenciários são chamados de medievais, mas diversos países tiveram redução da criminalidade ao rever a lógica do sistema prisional (a Holanda e a Suécia são exemplos famosos).
Respeitar os Direitos Humanos implica em repensar toda a lógica penitenciária, porque só através de uma abordagem humanizada é possível construir um modelo de reabilitação funcional. E isto não é apenas bom para o bandido, é bom para a sociedade, pois possibilita um cenário onde “entrar para o crime” não significa um caminho sem volta. Bandido bom é bandido reabilitado.
Por que os Direitos Humanos olham com mais atenção para pobres, mulheres, negros e LGBT?
Vimos acima que os Direitos Humanos atendem a todos e tratam de condições básicas para assegurar a dignidade da vida humana. No entanto, o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, com uma considerável fatia de sua população vivendo abaixo da linha da pobreza. Nos últimos tempos, houve um aumento do desemprego e da população em situação de rua, principalmente nos grandes centros urbanos. Estes fatores contribuem para que certas populações encontrem-se em situação de maior vulnerabilidade social (sem alimento, sem saneamento básico, sem acesso à saúde, etc.). Por essa razão, demandam um olhar mais atento.
No país, também temos um considerável número de casos de violência contra a mulher, contra a população LGBT e, notavelmente, contra jovens negros. Dados estatísticos e histórias mostram que estes perfis são alvos de mais violações de direitos e estas violações acontecem simplesmente por sua condição social – de mulher, LGBT, negro(a). Já imaginou se perceber vítima de violência simplesmente por você ter nascido do jeito que você é?
Vale lembrar que os direitos humanos são “inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição”. A discriminação nada mais é do que pensar que alguém é menos humano do que você – e a desumanização é o argumento mais comum para justificar tratamentos atrozes.
No Brasil, o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência revela que jovens negros têm 2,71 vezes mais chances de morrer do que jovens brancos. Isto acontece porque as regiões que historicamente concentram a maior parte da população negra são as favelas, estigmatizadas como antros de criminalidade. Por conta deste estigma, que não reflete a realidade dos inúmeros moradores honestos que ali habitam, a mídia e a população acabam apoiando ações truculentas nestas regiões. Muitos jovens negros são discriminados como suspeitos de associação com o crime e vitimados no fogo-cruzado.
Tendo em conta que os Direitos Humanos são para todos e visam a erradicar a violência, é natural que os defensores de direitos humanos se dediquem a casos onde as violações são muitas e mais evidentes, pois tratam-se de populações em estado de maior vulnerabilidade social (ou seja, que tem mais risco de sofrer violência, de passar fome, etc.). O que pode parecer ser uma “ajuda extra” na verdade é só uma forma de possibilitar a justiça em um contexto de grande desigualdade.
Vale salientar que sociedades com menor contraste entre classe/gênero/raça têm menos tendência à violência. Há inúmeros relatórios da ONU sobre o tema, mas por conta do viés do blog escolho esse aqui, sobre a importância da igualdade de gênero para a resolução de conflitos mundiais: Preventing Conflict, Transforming Justice, Securing the Peace. A não discriminação é, sem dúvida, o objetivo de base na luta por direitos humanos.
Referências:
[+] A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras. Relatório da OXFAM Brasil.
Autora
Thaís Lopes é socióloga e leitora voraz (de livros e mapas), apaixonada por culturas diferentes e por seu gato, Gandalf.
Créditos da imagem: Revista CityPenha e Interaction Institute for Social Change. Artista: Angus Maguire.