Texto de Priscilla Toscano para as Blogueiras Feministas.
“Bruxas” porta-vozes de ideais feministas foram queimadas em fogueiras num passado não tão remoto. Essas “bruxas”, ativistas/guerrilheiras de ontem e de hoje, não carregam consigo espadas, facas, armas de fogo ou qualquer tipo de utensílio bélico. Tampouco são possuidoras de habilidades mágicas e feitiços – “bruxaria”. Elas dispõem nada mais que seus próprios corpos para enfrentarem suas batalhas. E que corpos são esses? São o maior triunfo que possuem nessa luta, e ao mesmo tempo, são frágeis porque são apenas corpos, finitos como qualquer corpo. O corpo portanto, pode ser entendido como matéria condicionante da utopia pois, como disse Foucault¹, ele é esse lugar sem recurso ao qual estou condenado, afinal, ainda usando suas palavras, para que eu seja utopia, basta que eu seja um corpo (FOUCAULT, p. 8 e p. 11, 2013).
Em uma rápida pesquisa na internet, no site de buscas Google, ao procurar o significado da palavra utopia, encontrei uma resposta ampla, aberta, capaz de servir a diversos contextos. Ela é merecedora inclusive de uma reflexão mais longa a partir da exploração filosófica dos conceitos de felicidade, harmonia e indivíduo, no entanto este não é o foco desse texto. Aqui quero apenas usar o significado atribuído pelo dicionário Google a tal substantivo feminino, para brevemente pensar sobre as recentes ações ativistas lideradas por mulheres, como a luta da qual Marielle Franco faz parte. Portanto gostaria que a leitora ou o leitor lesse essa resposta pensando-a com tal propósito.
substantivo feminino
1. lugar ou estado ideal, de completa felicidade e harmonia entre os indivíduos.
2. qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ideal, fundamentada em leis justas e em instituições político-econômicas verdadeiramente comprometidas com o bem-estar da coletividade.
Bem, os feminismos são movimentos sociais políticos que lutam pela promoção dos direitos humanos das mulheres e, seja qual for a abordagem, está compromissado com a inclusão, a igualdade e a democracia. Nessa perspectiva, está em plena concordância com o significado de utopia acima: existe para lutar por uma sociedade ideal fundamentada em leis justas. E, no labor dessa empreitada, propõe-se a questionar que sociedade ideal é essa, bem como, que personagens são esses que construíram as tais leis justas. Seu trabalho é dedicado a enfrentar o patriarcado de forma radical e por vezes, utópica.
Nossa história de emancipação foi conquistada com muita luta. Milhares de mulheres militam cotidianamente para modificar situações, construir novas realidades, transformar comportamentos e pensamentos. Nessa trajetória tantas foram as protagonistas que no sacrifício de seus corpos nos fizeram sentir o impacto da finitude corporal e o desejo utópico de um corpo sem corpo². Corpos como os de Emily Wilding Davison, Rosa Luxemburgo, Heleny Guariba, Qandeel Baloch, dentre tantos. Corpos como o de Marielle Franco. Suas histórias são motivo de orgulho, suas mortes alavancaram e ampliaram discussões. Aos mesmo tempo, suas mortes servem como uma espécie de alerta a toda comunidade ativista, elas nos lembram da limitação óbvia de nossos corpos. Elas nos fazem pensar em utopia. Elas nos fazem pensar em corpos utópicos.
… pode bem ser que a utopia primeira, a mais inextirpável no coração dos homens, consista precisamente na utopia de um corpo incorporal. O país das fadas, o país dos duendes, dos gênios, dos mágicos, este é o país onde os corpos se transportam tão rápido quanto a luz, o país onde as feridas se curam com um bálsamo maravilhoso na duração de um relâmpago, o país onde se pode cair de uma montanha e reerguer-se vivo, o país onde se é visível quando se quiser, invisível quando se desejar. (FOUCAULT, p. 8, 2013).
Foucault metaforicamente fala em fadas, duendes e mágicos. Facilmente também poderia incluir as bruxas nessa passagem. Em 14 de março de 2018 “abriram fogo” contra mais uma “bruxa” e nós pobres mortais não temos como curar essa ferida com uma bálsamo maravilhoso. Nós pobres mortais também sabemos que essa caçada não está extinta, ao contrário, ela é cotidiana. Até quando vão nos matar? Até quando vão nos queimar em praça pública? Onde buscar recursos para seguir com nossas ações e não entregar-se ao pessimismo? Como fazer com que nosso corpo individual e finito seja um corpo sem corpo? Eu não sei… mas gosto de pensar que uma possibilidade de sermos um corpo sem corpo é nos tornarmos um corpo coletivo. Se nosso corpo é finito, nossas ideias não. Que elas ressoem na coletividade. Que na força da coletividade nossas utopias se tornem possíveis. #MariellePresente #MarielleVive
Referências
¹ Michel Foucault (1926-1984) foi um filósofo francês contemporâneo. Suas reflexões permanecem fundamentais para os movimentos de contestação política e social. Participou teórica e praticamente dos movimento sociais que poderíamos chamar de vanguarda de seu tempo, sobretudo durante as décadas de sessenta e setenta. Saiba mais em: Para compreender Michel Foucault.
² O termo também é utilizado por Michel Foucault: “A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas um lugar onde eu teria um corpo sem corpo…” (p. 8, 2013).
Bibliografia
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico. In: O Corpo utópico e as heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013.
Autora
Priscilla Toscano é performer, diretora de teatro, arte educadora e pesquisadora. Mestranda em Teoria e Prática do Teatro pela ECA/USP. É uma das fundadoras e diretoras do Desvio Coletivo. Dedica sua criação artística solo a trabalhos performativos e intervenções urbanas que discutam questões relativas ao corpo da mulher no espaço público.
Créditos da imagem: Rio de Janeiro, março de 2018. Manifestação nas ruas em protesto pela morte de Marielle Franco. Foto de Ricardo Moraes/Reuters.