Texto de Fernanda Favaro para as Blogueiras Feministas.
Estocolmo sediou em abril um encontro mundial sobre igualdade de gênero: The Stockholm Forum on Gender Equality. O evento contou com presença de cerca de 600 especialistas de institutos de pesquisa, departamentos da ONU, organizações sociais, movimentos de mulheres e coletivos feministas, pesquisadores e jornalistas de mais de 100 países. A iniciativa de agências e governo sueco inaugurou um movimento de convergência de ideias sobre a implementação da Agenda 2030 a partir da perspectiva da garantia de igualdade de gênero – ela mesma um dos “novos” objetivos do milênio.
Participei do encontro como blogueira feminista a convite do Swedish Institute, uma agência pública que cria pontes entre a Suécia e outros países em várias áreas. Como brasileira e “nova sueca”, propus a mim mesma uma dupla tarefa: coletar ideias interessantes para o debate feminista e de gênero no Brasil, e refletir sobre minha posição, como mulher do Sul Global, em relação aos avanços e retrocessos da luta de mulheres no mundo. Uma “missão paralela” teve a ver com o minha pesquisa de mestrado sobre feminismo e empreendedorismo materno, por isso centrei foco nas mesas em que foram debatidos temas como: justiça financeira, empoderamento econômico e reconhecimento político e institucional do trabalho doméstico e da cuidadora.
Considero um privilégio viver a experiência de morar num país capaz de ensinar tanto sobre perspectivas feministas até então desconhecidas para mim. Para começar, estar aqui é viver na própria pele a dupla discriminação por ser mulher e carregar outra etnia e origem, com seus conhecidos desenvolvimentos em termos de exclusão do mercado de trabalho, pouca ou nenhuma legitimidade em diversos âmbitos, baixa representatividade e invisibilidade social. É ver nascer novos movimentos de resistência de feministas em regiões empobrecidas em nome de todas as mulheres que sofrem com o radicalismo religioso por um lado, e com o ódio neonazista por outro, tais como as corajosas mulheres do coletivo Förortfeminismen (Feminismo da Periferia). Mas também é usufruir da luta de feministas suecas históricas, como as incríveis mulheres do Grupp 8, por direitos que agora são de todas as mulheres que aqui habitam, entre eles o aborto descriminalizado e seguro, leis trabalhistas protetivas e antidiscriminatórias, creche gratuita e universal e uma ampla rede de proteção contra abuso e violência doméstica, apenas para citar alguns.
Por isso, o fato de ver ministras sentadas juntas na mesa de abertura comentando a política feminista sueca, implementada há três anos, não foi uma surpresa. De alguma maneira, meu olhar já naturalizou essa imagem. Ao mesmo tempo, foi impossível não lembrar do Brasil e seus homens brancos e heterossexuais ocupando espaços de poder. Como ainda estamos longe de ver mulheres brasileiras, e de tantas outras nacionalidades, no topo! Assim como não tem sido nada fácil, nem ao nosso nem a muitos outros governos, entender que “igualdade de gêneros não é somente a coisa mais certa de se fazer, mas a mais esperta”, nas palavras da ministra para Assuntos Estrangeiros Margot Wallström, referindo-se ao fato de que países que investem na mulher costumam ostentar os melhores indicadores de crescimento econômico, sustentabilidade ambiental, paz e bem-estar social. A verdade, cujas evidências empíricas não deixam muito espaço para questionamentos, é que sociedades que promovem a liberdade, a felicidade e o empoderamento de suas mulheres são lugares mais felizes para todas as pessoas.
Expectativas x realidades
No caminho da equação: investir na mulher = atingir o desenvolvimento, sugerido pela ministra, há questões complexas e especificidades locais que fogem do escopo dos debates. Na mesa sobre justiça financeira e gênero em que estive presente, fomos, nós, mulheres vindas dessa periferia amplificada que é o sul do mundo, as que questionaram a aplicabilidade (para nossos contextos) de diversas ferramentas. Após o debate sobre a necessidade de se olhar para as necessidades específicas das mulheres na hora de desenhar políticas públicas e soluções ad hoc, vozes da plateia trouxeram à tona barreiras anteriores, como o controle da internet por estados totalitários e a necessidade de que se melhorem os mecanismos de financiamento em regiões em conflito onde “o dinheiro quase sempre não chega”. Serviços financeiros que possam ser acessados eletronicamente sem que mães, donas de pequenas oficinas ou terras, precisem deixar seus filhos com terceiros para ir ao banco. Linhas de crédito especiais a mulheres que são arrimos de família, ou transporte público gratuito para mulheres desempregadas foram algumas das ótimas ideias citadas – todas elas, porém, aplicáveis a contextos em que muitas ainda não estão.
O diálogo entre diversas realidades em que as mulheres do mundo vivem continuou no debate sobre trabalho doméstico/cuidados não remunerado, que produziu algumas conclusões importantes. A primeira foi que reconhecer e valorizar o trabalho doméstico e do cuidado não se trata mais de uma escolha, mas sim de sermos capazes ou não de acessarmos nossa própria humanidade. Por isso, é preciso que se universalizem boas políticas de licença parental (e outras relacionadas ao trabalho doméstico e de cuidado), o que ainda é uma verdadeira utopia para grande parte do mundo.
A segunda conclusão é de que para que tais políticas sejam realmente transformadoras, há de se superar as normas que levam à divisão estrutural de gênero no trabalho — a famosa regrinha invisível que determina que “mulheres cuidam dos filhos e da casa” e “homens trabalham fora”. Na prática, isso significa uma profunda revolução cultural que transforme as instituições sociais engendradoras dos papéis de gênero e inclua uma educação para uma nova masculinidade. Caso contrário, as mulheres continuarão sobrecarregadas e infelizes de norte a sul, fato que se agrava com a chegada dos filhos de acordo com Monika Queisser, da OECD. “A maternidade é um divisor de águas mesmo nas sociedades mais igualitárias. Depois de se tornarem mães, mulheres em todos os países passam a trabalhar até 3 vezes mais do que o homem”.
Libertar a mulher é libertar o homem – e vice-versa
Em uma das apresentações que mais contribuiu para o debate de normas, Gary Barker da Promundo comentou os resultados da pesquisa: A situação da Paternidade no Mundo. Através do estudo, o grupo vem demonstrando que quando o homem “volta para o lar” (metáfora de um tempo imemorial em que as tarefas eram menos divididas “por gênero” dentro das diferentes tribos), dois movimentos acontecem: a mulher se liberta para sonhar seu futuro e determinar sua própria narrativa, e o homem ganha mais qualidade de vida, com mais saúde mental e física, e conexão com a família, comunidade e natureza, entre outros aspectos mais ou menos tangíveis.
Algo muito diferente do quadro atual, no qual a maioria dos homens estão presos na camisa deforça da masculinidade tóxica e os pobres são duplamente oprimidos. Um dos estudos da Promundo revelou, por exemplo, que homens pobres se sentem inferiores aos ricos, o que não necessariamente ocorre com as mulheres, numa indicação de que o patriarcado também não é nada generoso com eles ao estimular uma competição perversa e (auto)destrutiva.
Um dado interessante neste sentido, trazido por Barker, dá conta de que um quinto dos homens entrevistados pela Promundo nos países considerados mais opressores para as mulheres se definem como favoráveis à justiça e igualdade de gênero. Pode parecer pouco, mas não é. Em um encontro sobre novas masculinidades que participei no ano passado, um ativista do Líbano afirmou que este é um movimento silencioso de homens cansados da alienação ao sofrimento das mulheres,por um lado, e da prisão de seus papéis compulsórios por outro. Naquela ocasião, dirigindo-se a outros homens do salão, ele disse uma das frases mais inspiradoras que já ouvi na vida, dadas as circunstâncias: “É preciso eliminar o patriarcado dos nossos corações e mentes”.
Há, portanto, uma enorme oportunidade de disrupção e isso passa pela (re)volução do homem. “Estamos falando de uma nova narrativa de masculinidade. Infelizmente, ainda nenhum país enxergou isso como uma meta e resolveu arregaçar as mangas”, disse Barker. De volta a esta realidade, me parece que o nascimento deste novo ser requer, antes de mais nada, que meninos e meninas sejam tratados e educados como iguais, sem distinção de gênero. Que meninas possam ser o que quiserem, sim, mas que meninos também possam ser a expressão de uma humanidade sensível que o patriarcado e o capitalismo tentam desesperadamente enterrar. Há muito trabalho pela frente.
A meta em todas as metas
A necessidade de integrar a meta da igualdade de gênero a todas as demais metas do milênio, para além de mantê-la como um objetivo em si mesmo, foi pauta quente da discussão sobre a correlação entre gênero, trabalho e pobreza. Parece óbvio e é, mas o uníssono: “lutar por igualdade(s) é um requisito para alcançar todas as demais metas de desenvolvimento”, faz mais sentido que nunca em uma era de assustadores retrocessos como a nossa.
Se, por um lado, são as mulheres e meninas (em especial negras e indígenas) quem mais sofrem com falta de oportunidades, discriminação, guerras e catástrofes climáticas, por outro elas reinvestem até 90% de suas rendas em suas comunidades e famílias, gerando espirais ascendentes de desenvolvimento humano. Por isso, é preciso aplicar as lentes de gênero a todas as políticas públicas, garantindo que suas vozes estejam presentes em todos os âmbitos da sociedade e suas demandas acolhidas pra valer. Isso passa, por exemplo, por aplicar e respeitar cotas de participação das mulheres na política, onde as decisões são tomadas.
“Mulheres nas mesas de negociação são capazes de produzir formas inovadoras de diálogo social; é preciso que se advogue e lute por isso”, afirmou Ouided Bouchamaoui, ex-presidente da Confederação Tunisiana da Indústria, Comércio e Artesanato e indicada ao prêmio Nobel da Paz.
Lembrando que pobreza não é apenas a escassez de recursos materiais e financeiros, mas a falta de protagonismo sobre suas próprias vidas, de voz e agência na família, ede representatividade e poder na sociedade e esferas políticas. Carin Jämtin, da agência sueca de cooperacão internacional Sida, pontuou que umas das maneiras mais efetivas de investir na erradicação da pobreza é integrando a mulher à força de trabalho, uma vez que o empoderamento econômico possui potencial para retirá-la das demais pobrezas. Para muitas mulheres no mundo, trabalhar e ganhar seu próprio dinheiro, ainda que dentro do quadro geral de opressão de classes pelo capitalismo, possui uma dimensão muito maior do que apenas o aspecto econômico, trata-se de uma porta para conquistar legitimidade e lutar por outros avanços. “Agora sou respeitada em casa e no meu bairro”, é uma frase que já ouvi muitas vezes em minha vida entrevistando mulheres de comunidades, seja no Brasil, em Uganda ou na Palestina. Sem ignorar a existência de relações abusivas onde há violência financeira, para muitas de nós o trabalho segue sendo o passaporte a uma certa humanidade, ainda que limitada por outras opressões.
Onde queres ódio, cores
Um dos pontos altos do fórum foi a fala de Linnea Claeson, jovem ativista de direitos humanos. Por meio de seu perfil @assholesonline no Instagram, Linnea criou o que parecia impossível: uma maneira irreverente e inspiradora de responder à asquerosa misoginia amplamente praticada nas redes graças ao anonimato digital e à cultura do ódio dos nossos tempos. O perfil reúne mensagens que ela e outras feministas e ativistas de direitos humanos recebem de haters (inclusive algumas com ameaças de estupro e assassinato), junto com as perspicazes e pedagógicas respostas de Linnea.
Uma foto de um pênis não solicitada é respondida com um desenho de um sapato de salto pisando em um pênis, e a frase: “Meu salto é maior que seu pau”. Fotos impróprias ou mensagens muito pesadas recebem dedicação especial: Linnea avisa que tais conteúdos poderão aparecer no dia seguinte na caixa de mensagens do chefe do remetente, com texto explicativo. Tudo leve, cheio de corações e emojis fofos. “Junte-se à revolução arco-íris”, convida Linnea, cuja fala abriu o segundo dia do encontro e agora encerra o meu texto.
Já no final da sua apresentação, refletindo sobre a cultura de ódio que existe nas redes sociais suecas, Linnea disse a frase que seria citada em vários outros momentos do fórum: “Somos um dos melhores entre os piores países em igualdade de gênero”. O melhor país pra ser mulher é, na verdade, um dos menos piores, dada a caminhada longa que também aqui ainda se trilha.
Ainda assim, essa bolha tão distante da realidade da maioria absoluta das mulheres do mundo tem me feito cada dia mais capaz de olhar pra mim mesma no espelho, e ver todas nós refletidas. E isso dá a dimensão do tamanho da nossa luta. Quando comecei a escrever as primeiras linhas desse texto, a imagem de um jardim simbolizando o feminismo na Suécia me veio em mente. Mas não, não estamos em um jardim: estamos nas ruas, nos encontros, nos coletivos e redes também deste lado do mundo. Que sigamos juntas e incansáveis até que toda a humanidade se liberte do patriarcado.
Autora
Fernanda Favaro é jornalista e mora na Suécia.
Créditos da imagem: The Stockholm Forum on Gender Equality 2018. Da esquerda para a direita: Mia Odabas (moderadora), Margot Wallström (ministra de Negócios Estrangeiros – Suécia); Isabella Lövin (ministra da Cooperação para o Desenvolvimento Internacional e do Clima); Ann Linde (ministra dos Assuntos da União Europeia e do Comércio); e Annika Rembe (diretora geral do Instituto Sueco). Foto de Margareta Bloom Sandebäck.