Texto de Ana Flor para as Blogueiras Feministas.
Talvez esse seja um dos melhores textos do qual tive o prazer de escrever. Principalmente por conceber o quão nossas novas gerações de travestis estão empenhadas em ressiginifcar o conceito de irmandade. Algo que me toma de amor. No mais profundo sentido da palavra. Termos o direito de amarmos umas as outras é perceber que estamos sendo humanizadas em um espaço-tempo que nunca desejou esse feito.
Assim sendo, não é preciso muito para identificar que historicamente fomos construídas dentro de uma rivalidade que nos afundou no campo da solidão. Encontrar-se sozinha era sinônimo de travesti. Infelicidade tornou-se, durante décadas, uma rotina. Tesouras e giletes desfilavam em nossos corpos como demarcação de território sagrado e campo minado. Distância tornava uma esquina segura. Mudar o lado era regra. Afinal, perigo. Em outras palavras: desafeto. Construção social do projeto de desumanização do direito de ser e viver travesti.
Aproveito para abrir um parêntese e destacar como não desconsidero que nossas mais velhas traçaram rotas de fugas para permanecer juntas e seguras, mas sim que tento apontar como estamos, hoje, concretizando o que no passado, talvez, fosse uma exceção: o amor. E não apenas o “amor”, mas o amor travesti.
Construir redes de afeto nos possibilita crescer. É absurdamente lindo como Liniker e Linn nos permitem visualizar uma felicidade travesti. Digo isso, pois acredito que as meninas também devem ter recebido o convite compulsório da prostituição, uma vez que estamos no Brasil, o país que se orgulha em nos submeter a essa profissão como se outras não fossem possíveis.
As meninas cantam e nos fazem sentir como é gostoso o cuidado de si, no outro. Lembro que estive no show da Linn, no Coquetel Molotov, em Recife, e foi uma das vezes que pude me sentir segura em um espaço com milhares de pessoas. Ela cantava como ser travesti não era, nem nunca deveria ter sido, um problema. Isso fazia com que todas as travestis que estavam vendo o show se sentissem no palco, protagonistas. Proporcionava-nos uma apoteose “terrorista de gênero”. Desconfortava um momento que o mundo cisgênero e branco pensou para os seus.
Não obstante, recordo quando Liniker esteve no programa Amor e Sexo, dizendo com outras palavras que já não aceitávamos caladas o fato do Brasil ser o país que mais mata pessoas trans e travestis ao cantar a música Geni, de Chico Buarque.
Então, chego ao que me tornei. No que nos tornamos: travestis cada vez mais seguras de si. Tudo o que não nos desejam, e que só foi possível porque outras estiveram e estão ao nosso lado. Hoje sou porque três amigas (Maria Clara, Ana Giselle e Mayara Cajueiro) são. Hoje, Linn e Liniker são duas cantoras que, mesmo sem querer, permitem-nos construir estruturas para uma irmandade travesti fruto do mais puro amor e luta, posicionamentos políticos.
Talvez, para alguns, pareça cafona. Mas o alivio em saber que podemos contar umas com as outras nos permite respirar e tentar. Hoje podemos chorar, no ombro da outra. Entretanto, também podemos sorrir e compartilhar dos afetos que estão sendo edificados em nossas vidas. Antes, tentar não era possível. Hoje, tentar é uma possibilidade de se sentir bem. Estamos nos tornado referências travestis quando tudo que sabíamos era a fabulosa Roberta Close.
Por fim, aposto que toda essa fonte de crescimento se deve ao fato de estarmos compondo uma nova visão que carrega consigo o direito de sermos umas pelas outras. Principalmente quando falamos de travestis negras e as ramificações dos quilombos afetivos. Ouso dizer que, no backstage da vida, estamos esboçando planos de resistências para que o Brasil compreenda de uma vez por todas que não apenas uma, duas ou três travestis serão grandes, mas que nossa irmandade nos fará tão forte que nos tornaremos tudo aquilo que, outrora, desejamos.
Autora
Ana Flor Fernandes Rodrigues, 21 anos. Graduanda em Pedagogia na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Estagiária em Assistência Pedagógica na Organização Galera da Redação. Estuda e Pesquisa em temas relativos à gênero e sexualidade. Modéstia parte, uma travesti muito bonita! Militante por direitos para travestis e pessoas trans.
Créditos da imagem: Amigas há anos, as cantoras Linn e Liniker se divertem no backstage do lançamento de “Pajubá”, primeiro disco de Linn. Foto de Ricardo Schmidt/Revista Híbrida.