Visibilidade às especificidades: os feminismos na Amazônia a relevância da decolonialidade

Texto de Nathália Fonseca para as Blogueiras Feministas.

A ideia de escrever esse texto surgiu de uma conversa que tive, ainda na época da graduação, com uma colega que possui uma alta posição acadêmica mas, ao me ouvir falar sobre a minha pesquisa, exclamou: – Nossa! Eu nem imaginava vocês estavam discutindo feminismo tão profundamente aí em Belém!

Eu fiquei muito tempo intrigada com aquela afirmação, mas só o feminismo decolonial me deu ferramentas pra entender melhor o tanto de coisa que aquela afirmação me dizia.

O debate — inaugurado pelas feministas negras em meados de 1980 — que centraliza a tensão acerca de quais mulheres surgem no pensamento das pessoas no exato momento em que ouvem o termo “mulheres” tem se intensificado ainda mais no ambiente online. As vozes que anteriormente pouco encontravam espaço¹ para publicizar suas demandas emergem na internet e reclamam seu direito de fala a partir das especificidades de cada grupo. Esse é um fato muito importante pois, sabemos, historicamente as mulheres que eram situadas em condição de subalternidade não tinham, sequer, o direito de nomear as opressões que sofriam.

Bélem, 08 de março de 2018. Ao centro, Flávia Ribeiro. Foto de Elielson Silva.

Chandra Mohanty, autora indiana, afirma em seus estudos que as feministas do Norte Global (Europa e Estados unidos, mais especificamente) por deterem o poder de produzir conhecimento científico, acabaram por construir um estereótipo acerca das características das mulheres de fora desse eixo de produção de conhecimento: seriam, em sua maioria, um grupo homogêneo de mulheres com baixa escolaridade, apolíticas, domestificadas e dóceis, entre outras coisas [E que, de passagem, precisavam ser salvas]. O intuito de trazer Mohanty pra esse diálogo não é acusar as feministas do norte global de seres “más”, mas elucidar que até mesmo o próprio processo de construção do sujeito do feminismo, assim como das demandas concernentes ao feminismo, além de ter sido perpassado pelas construções de raça e de classe, também foi atravessado pela lógica colonial que deslegitimou, inclusive, a capacidade de agência de algumas mulheres.

MAAAAS nós, que moramos nesses tais países “de terceiro mundo”², sabemos muito bem que essa não é a realidade dos nossos movimentos feministas. E sabemos também que existe um contexto histórico que muito marca a história dos movimentos feministas: enquanto a Europa estava no ápice de sua efervescência política do feminismo, muitos países da América Latina haviam sofrido golpes militares. E, ainda assim, a imprensa feminista estava a todo vapor trocando informações entre si e com outros países.

E isso não é diferente pra quem mora aqui, na Amazônia brasileira, na região norte do Brasil. Esse mesmo movimento colonial que demarcou as diferenças entre as mulheres do Norte e do Sul Global reflete, dentro do Brasil, através da distinção entre as regiões mais bem reconhecidas e aquelas que desde o início foram percebidas apenas como espaço de exploração da biodiversidade³. Sim, nós somos todas muito diferentes e nos organizamos de formas variadas. E, mesmo assim, muito suscetíveis à violência de gênero; a maneira de lidar com essa violência nem sempre é a mesma. Mas a impressão que tenho, é a de que as pautas que emergem daqui ainda ficam profundamente marginalizadas no cenário nacional. Imaginem os casos de exploração sexual de meninas nas balsas que transportam cargas entre Belém e Manaus, mas antes escolhem que atracar no município de Melgaço justamente pela fama que o local já possui – e, caso não tenha ficado exatamente elucidado, é a fama de que a exploração rola solta sem que se faça algo sólido contra (até hoje eu só conheci uma ONG que trabalha em defesa dessas meninas). O quão problemático é o fato de que essa pauta é tão pouco visibilizada dentro das pautas do feminismo nacional?

E a gente nem precisa ir tão longe… Quantas páginas do norte possuem alcance nacional? Quantas autoras daqui são lidas [fora daqui]? Uma importante militante do Feminismo Negro da Amazônia (e também amada amiga), Flávia Ribeiro, outro dia me chamou atenção pra isso: nos eventos feministas nacionais as palestrantes são majoritariamente de quais regiões?

Então, a gente pode concordar que se os feminismos latinoamericanos (assim como africanos, mas em nuances diferentes) são marginalizados em relação às produções de conhecimento. O mesmo ocorre entre as regiões brasileiras.

A virada decolonial, nesse caso, está em ouvir essas mulheres, ler essas mulheres, enxergá-las. Realmente perceber que a sua existência em lugares que silenciam suas especificidades, por si só, já é um ato político.

Existe um trecho de uma fala que Djamila Ribeiro fez quando esteve aqui em 2015 que muito me marcou, ela disse: “ser feminista no Brasil não é a mesma coisa que ser feminista em Uganda”. Assim certamente como eu, sendo uma mulher branca que mesmo morando na periferia ainda mora dentro da cidade, não experiencio a vivência de uma mulher negra que vive no mesmo local que eu, ou de uma mulher que vive no interior do estado do Pará. Mas isso não quer dizer que a gente não deve dialogar, pelo contrário!

Eu realmente acredito que é a partir do diálogo, da exposição de vivências e das opressões que nos atravessam de maneiras tão plurais podemos reivindicar uma sociedade mais igualitária, em que todo mundo conte, igualmente, como sujeito. E aí buscaremos uma democracia plena, que se atente a toda essa pluralidade.

Notas

¹ Sabemos que seria um quadro muito mais promissor sem a exclusão digital.

² Implico muito com esse termo, porque até mesmo o padrão de “bem estar social” é baseado num modelo de vida que muito herda da ideia colonial de que nós somos “os outros” e nosso modo de vida, pra melhorar, deveria se inspirar mais neles.

³ Enquanto seus sujeitos foram invisibilizados.

Referências

MOHANTY, Chandra Talpade. Under Western Eyes: Feminist Scholarship and Colonial Discourses. Boundary 2, v. 12, n. 3, p. 333-358, 1984.

Para saber mais sobre as ondas do feminismo acadêmico e a ampliação do sujeito do feminismo:
RIBEIRO, Djamila. As diversas ondas do Feminismo Acadêmico. Carta Capital, 2014.

Autora

Nathália Fonseca, 25 anos. Latinoamericana-amazônida-paraense-belenense, mãe solo de Gabi e Enzo e Mestranda em Comunicação, Linguagens e Cultura (UNAMA). Integrante do Grupo de Pesquisa Comunicação, Política e Amazônia (COMPOA/ UFPA). Tentando conciliar a vida de pesquisadora (em formação) das práticas feministas digitais com a maternidade e a militância, mas como é capricorniana tem certeza que um dia consegue.

Créditos da imagem: Bélem, 08 de março de 2018. Ao centro, Flávia Ribeiro. Foto de Elielson Silva.