Dirty John e a armadilha do relacionamento abusivo

Texto de Marília Cairo para as Blogueiras Feministas.

Quem viu Dirty John: O Golpe do Amor, uma das novas séries da Netflix, se deparou com um drama intrigante. A produção, que tem um argumento principal já bastante explorado, possui uma atmosfera envolvente. A série é uma boa ilustração de como se forma um relacionamento abusivo e de como uma mulher pode se ver de repente paralisada em redes invisíveis, a partir da maneira gradativa com que a trama vai revelando as sutis marcas da agressividade e do controle em uma relação.

A história, baseada em fatos verídicos, de uma rica e prestigiada design de interiores da Califórnia, Debra Newell, que se encanta de forma perigosa por John Meehan, um homem misterioso que conheceu pela internet, soa contemporânea e familiar. Apesar dos acontecimentos extraordinários e reviravoltas do caso, a história também tem um ar corriqueiro, que aproxima e gera empatia. Impossível não se identificar e se colocar no lugar de Debra. A complexidade sutil da relação doentia e as consequências disso na vida da vítima e de seu ambiente familiar se caracterizam como os pontos centrais da trama. Os padrões de conduta do abusador e as reações da vítima se assemelham com diversos outros casos de relacionamento abusivo que se vê todos dos dias no cotidiano, em noticiários e telejornais.

A influência negativa de uma relação amorosa na trajetória de vida de alguém, nesse caso a design de interiores Debra, é, ao mesmo tempo, previsível e desconcertante. Podemos acompanhar, com perplexidade e apreensão, a personagem saindo aos poucos da posição de mulher de intensa vitalidade para uma outra acuada e angustiada, na medida em que vai evoluindo a importância que Debra dá ao namorado, que rapidamente torna -se marido, em sua vida.

A série mostra a fuga da realidade por parte da protagonista diante das primeiras evidências de perigo, algo bastante comum em relações abusivas. Quando surgem indagações da família sobre o passado do marido, Debra procura a única pessoa que ela sabia que defenderia o seu casamento: sua mãe. Ela aconselha a filha a permanecer no relacionamento, apesar de muitos alertarem que havia algo errado. A atitude da mãe, aliada ao conflito da própria Debra, evidencia o peso que a sociedade dá à figura masculina para que uma mulher possa se legitimar como vencedora, e traz ainda, a partir das crenças da matriarca, a conotação do casamento como uma instituição sagrada, para a qual se deve render grandes sacrifícios, a ponto desta convicção desafiar a própria integridade individual. Nesse aspecto, apesar de ficar evidente que Debra intuía algo errado e só queria um álibi para justificar a sua própria decisão, é interessante constatar como a mãe, de forma mais explícita em relação ao que se pode notar em Debra, enxerga a relação amorosa, e a importância que ela dá ao homem e ao casamento, visões pautadas numa orientação patriarcal que ainda se perpetua com muita força.

A personagem Verônica Newell, inspirada na filha mais velha de Debra, que teve o nome alterado na série, também se destaca, na medida em que ela é só assertividade e objetividade. Ainda que possamos considerá-la por vezes um tanto fria e até mesmo insensível, ao sentirmos falta, nela, de algum traço de toda a amorosidade e calor humano que sobram em sua mãe, Verônica parece representar, ainda que de forma um pouco caricatural, uma mulher racional, não influenciável por melodramas. A sua tenacidade funciona como um contraponto em relação ao comportamento oscilante e muitas vezes ingênuo de Debra. A forma como a dinâmica da personagem Veronica é construída e como ela questiona a mãe sobre o perigo que corre nos faz validar positivamente a sua conduta no que diz respeito à uma situação de risco, ao mesmo tempo em que condenamos o comportamento confuso e por vezes ingênuo de Debra, ainda que tenhamos empatia pelo dilema vivido por ela.

Dirty John é uma produção bem sucedida sobre um tema já bastante discutido, e que dá espaço para importantes reflexões a respeito das relações amorosas e também dos desafios da mulher, vítimas mais frequentes de amores abusivos; quais devem ser as suas referências, o que precisa cultivar para atingir seus objetivos, e sobretudo até onde deve sacrificar por um relacionamento.

Autora

Marília Cairo se formou em Produção Cultural em 2009 e em Jornalismo em 2014. O universo das palavras é o seu lugar de paz e transformação. Escrever é uma maneira de reviver os acontecimentos, de brindar à vida, de ver por outro ângulo, de expurgar o que ficou acumulado das experiências vividas. Uma aventura…