Os modelos de feminino

Yo era una mujer quemada, llena de llagas por dentro y por fuera, y tu hijo era un poquito de agua de la que yo esperaba hijos, tierra, salud; pero el otro era un río oscuro, lleno de ramas, que acercaba a mí el rumor de sus juncos y su cantar entre dientes. Y yo corría con tu hijo que era como un niñito de agua, frío, y el otro me mandaba cientos de pájaros que me impedían el andar y que dejaban escarcha sobre mis heridas de pobre mujer marchita, de muchacha acariciada por el fuego.”

LORCA, García. Bodas de Sangre¹

 

Escutamos sempre quando querem depreciar o feminismo: “não sou feminista, sou feminina”. E isso nos incomoda, porque o que significa exatamente ser feminina? O que nos faz mulheres? Identidade de gênero é uma questão muito complexa e  corremos sempre o risco de incorrer em estereótipos. A Talita fez uma reflexão interessante aqui no começo do mês sobre estas construções. Poderíamos simplificar e simplesmente dizer que mulher é  quem tem vagina, mas daí vem nossas companheiras e companheiros trans e desmontam isso – o que só enriquece nossa perspectiva, aliás. É possível ser mulher sem usar rosa, sem gostar de cozinhar, sem se maquiar, sem ser mãe. Mas também pode-se genuinamente corresponder a tudo isso.

Não estamos aqui travando uma guerra contra o “feminino” e seus modelos. Quem deprecia o que é tradicionalmente atribuído às mulheres é misógino, não feminista, cabe ter isso bem claro. O feminismo amplia possibilidades para as mulheres, porque muitas não se identificam com modelos fechados de “feminino”, por mais pressionadas que sejam a se encaixar. Por exemplo, a delicadeza e a fragilidade míticas. Não me cabem, não cabem a um monte de mulheres. Acredito que as mulheres negras, por exemplo, não se vêem contempladas por um modelo de feminilidade eurocêntrico da princesa de olhos azuis, frágil, delicada, a mocinha encastelada. À estas mulheres, historicamente, coube o trabalho duro, braçal, exaustivo. Não eram poupadas, e não correspondiam ao ideal pálido de perfeição dos poetas. Seriam então as mulheres negras menos “femininas” do que as brancas?

Não sou negra, mas também não correspondo ao ideal de delicadeza. Meus gestos e minha presença no mundo não são discretos. Faço um claro esforço para ser uma pessoa polida e diplomática, qualidades que acredito benvindas a todas as pessoas. Mas se o que há de comum ao gênero feminino é submeter-se a um modelo discreto de estar no mundo, danou-se: não sou mulher. Se o que há de comum ao gênero feminino é sentir-se violentamente pressionada a corresponder às expectativas de outrem, danou-se duas vezes.

A verdade é que eu sou mulher, para além dos estereótipos de gênero. Até correspondo a alguns deles e não sinto necessidade de pessoalmente negá-los todos para me auto declarar feminista. Mas ainda que não correspondesse a nada, não poderia deixar de ser mulher, porque há muitas maneiras de sê-lo, tantas quantas são as maneiras de ser homem. Todo ser humano está imerso em cultura e expectativas alheias. Não há gosto inerente, comportamento inerente, visão de mundo inerente. Por mais independente e críticos que sejamos, nossa maneira de se posicionar no mundo é construída culturalmente. Ninguém “nasceu assim”. Vamos vivendo e nos moldando, aprendendo coisas no caminho. O meio em que  estamos inseridas, muitas vezes na forma de um discurso não-verbal, nos diz como as mulheres devem (ou deveriam) ser. A nossa individualidade é fruto de uma combinação entre estas construções coletivas que nos rodeiam, portanto a diversidade é esperada e deveria ser celebrada, não patrulhada.

 

foto de Alcalaina no Flicr em CC, alguns direitos reservados

 

¹ Pode causar algum estranhamento a citação de um trecho de Bodas de Sangre aqui fora de um contexto crítico, então cabe a explicação: na peça, o motor da tragédia é o desejo feminino que,  sufocado em nome da honra, resolve transbordar no momento inoportuno. Sabemos que a repressão da sexualidade feminina é uma das bases do machismo, ainda que nos sejam muitas vezes vendido que as mulheres não são especialmente interessadas por sexo.