Conceito de família(s): uma disputa cultural

Oito de dezembro é uma data comemorativa instituída por João Goulart: dia da Família. A ONU tem um Dia Internacional da Família, em 15 de maio, utilizado criticamente para questionar pressupostos e ampliar o conceito de família, discutindo conceitos tradicionais e dando voz às mudanças.

No entanto, embora seja pouco conhecido no Brasil, o dia da família tem se tornado realidade de outra forma: está cada vez mais forte a pressão religiosa para impor nas leis e na cultura os valores do modelo religioso cristão de família, no qual só se admite como família o par formado por homem e mulher reunido para produzir e criar os filhos desta união.

Para citar um exemplo, parlamentares evangélicos e católicos em março desse ano pediram mudanças nas políticas do Ministério da Saúde para as campanhas de carnaval e para criar uma Secretaria da Família em lugar da Secretaria Antidrogas. Violam assim o Estado laico ao quererem impor um viés religioso as políticas públicas. Não importa se a maioria dos brasileiros é cristã, em um Estado democrático e laico as minorias – inclusive religiosas – devem ser respeitadas e não podem ser obrigadas pelo Estado a seguir preceitos religiosos de forma indireta.

É necessário lembrar que o modelo religioso tradicional de família foi criado para privilegiar um homem como dono de escravos, esposa e filhos. Ou seja, é um modelo altamente excludente e pouco adaptado aos dias atuais, nos quais não há mais escravidão, mulheres conquistaram a igualdade de direitos, reconhece-se a união formada por casais homossexuais e crianças também têm direitos a serem respeitados. Apesar das mudanças jurídicas, reconhecendo a pluralidade de formas de família e os direitos de indivíduos, o poder e a violência inerentes ao modelo conservador continuam em ação. Como lembra Eduardo Galeano:

A cultura do terror / 2

A extorsão
o insulto,
a ameaça
o cascudo,
a bofetada,
a surra,
o açoite,
o quarto escuro,
a ducha gelada,
o jejum obrigatório,
a comida obrigatória,
a proibição de sair,
a proibição de se dizer o que se pensa,
a proibição de fazer o que se sente,
e a humilhação pública
são alguns dos métodos de penitência e tortura tradicionais na vida da família. Para castigo à desobediência e exemplo de liberdade, a tradição familiar perpetua uma cultura do terror que humilha a mulher, ensina os filhos a mentir e contagia tudo com a peste do medo.

-Os direitos humanos deveriam começar em casa – comenta comigo, no Chile, Andrés Dominguez.”

GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2000. 8ed. p.141.

O discurso jurídico, que sempre foi conservador, tem cada vez mais aberto espaço para a diversidade de famílias (que sempre existiram, embora não fossem reconhecidas nem protegidas pelo Estado). No entanto, o que temos visto é a disputa cultural pelo conceito de família, insistindo em retornar ao modelo conservador, no qual a família passa a ter mais importância que os indivíduos que a compõem. E, dentro da família, conservando a hierarquia na qual mulher e filhos devem se submeter à liderança masculina.

Não é só este tipo de família que existe no mundo. Cena do filme "Os Incríveis", Disney/Pixar.

Em nome da preservação da família vem crescendo o discurso que nega à mulher o direito a denunciar violência. Não são poucas as mulheres que ouvem das autoridades “tem certeza que quer continuar a processar o pai de seus filhos?” e insinuam que o processo traumatizará as crianças. Em nome da “harmonia familiar” espera-se que a mulher abra mão de seus direitos e viva em um clima de terror e violência, o que revela um significado bastante estranho para o termo “harmonia”…

Ainda hoje o planejamento da quantidade e época de se ter filhos é considerado decisão do casal – e não como ato individual de cada uma das pessoas, desrespeitando sua autonomia. Por a lei entender que se trata de uma questão de família, exige-se a autorização do cônjuge para fazer esterilização definitiva quando não desejam mais filhos. A lei de planejamento familiar – teoricamente neutra – penaliza as mulheres, que não conseguem de seus maridos a autorização necessária para realizar a cirurgia de laqueadura.

Nesse sentido, é importante lembrar que a discussão do conceito de família não é só jurídica, mas especialmente cultural. Como lembra Marcos Nobre, analisando o filme “Os incríveis”:

O verdadeiro herói do filme é a família. A família tradicional, década de 1950, pai, mãe, três filhos, todos brancos. A mulher é novamente relegada ao lar e, enquanto tal, é a “mulher elástica”: realiza-se cuidando da casa, dos filhos e do marido. Cada membro da família é também um super-herói e eles têm de trabalhar juntos para salvar a si mesmos e ao mundo. No decorrer do filme, também o Sr. Incrível tem de aprender a trabalhar em equipe, tem de entender que são todos uma grande família, unidos contra a ameaça terrorista, e que cada um tem a sua função e seu papel.[…]

Os conservadores investiram pesadamente no campo cultural e no apelo aos “valores americanos” da grande massa da população, organizando cruzadas morais e religiosas, enquanto os progressistas ou se recusaram a fazer o debate nesse campo, ou simplesmente ignoraram o problema.

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Cada vez mais temos visto na mídia o uso do termo família como sinônimo do conceito religioso. Na internet um bom exemplo da disputa pelo conceito é a wikipedia. Comparando o verbete família em inglês, espanhol e português, impressiona ver como a página em português está mal estruturada a ponto de ser marcada para revisão por não ter fontes ou referências, além de trazer dados de confiabilidade duvidosa. Nas sugestões de leitura aparecem links para vários artigos que reproduzem ideias religiosas, como se a literatura sobre família se reduzisse ao discurso psicanalítico e religioso, quando na realidade é objeto de intensa pesquisa acadêmica nas mais diversas áreas [ex: uma busca pelo assunto “família” na base de periódicos SciELO Brasil retorna 1500 artigos acadêmicos].

No dia da família é importante lembrar que não existe só um modelo de família. Existem famílias dos mais variados tipos, adaptadas às mais variadas necessidades, gostos e afinidades. Família não precisa ser composta por um casal formado por duas pessoas (sejam uma mulher e um homem, dois homens ou duas mulheres). Família não precisa ser formada para produzir filhos, nem ser composta por laços sanguíneos (tratando a adoção como algo menor). Família não precisa estar restrita à heterossexualidade ou à heteronormatividade.

Tendo em vista tantas possibilidades de organização familiar, a proteção estatal do conceito “famílias” não deve estar vinculada ao conceito religioso cristão e conservador de família, calcado na união de homem e mulher para produzir filhos.

Portanto, ao falarmos de famílias, é preciso lembrar do Estado laico e combater o discurso religioso que quer interferir no nosso cotidiano e nas políticas de Estado para restringir a liberdade e a autonomia das pessoas em formarem suas famílias sem seguir um modelo pronto, autoritário, conservador e excludente. Famílias são muitas: existem, devem ser reconhecidas e respeitadas.