Cantadas: seu prazer, meu nojo!

Pensando muito friamente no que me mais me impulsionou a estudar teoria feminista, acredito que foram, basicamente, dois aspectos:

1) A sensação de que alguma parte da história da Cinderela não estava muito adequada à perspectiva da mulher;

2) O nojo que sinto de assediadores de rua.

Realmente, acho muito complicado imaginarmos que entre ser a Jasmine (para pegar um exemplo de princesa disney mais exótica) ou o Alladin, alguém vá preferir andar de carona no tapete mágico. No way, eu quero a lâmpada, o gênio e, sobretudo, o tapete voador para mim! Ambiciosa? Talvez, mas por que não deveria sê-lo? Ou por que deveria ambicionar apenas andar de carona, se posso sonhar possuir meu próprio transporte para a liberdade?

Hey, bonitão, quer dar um passeio no meu tapete mágico? Muitas emoções garantidas 😉 Imagem do filme Alladin (1992)

O segundo motivo que acordou meu profundo desejo de mudança social é a presença de homens assediadores de rua. Para eles não há limites de idade, embora pareçam preferir encabular meninas jovens.

Acho que comecei a ser assediada por estranhos, em ambientes públicos, por volta dos 13 anos. Ao contrário dos casos de horror que muitas amigas têm para contar, nunca sofri algo além das vulgares “cantadas”, inúmeras variedades delas. O que essa forma de assédio nos faz sentir?

(a) Que estamos abafando na gatonice;

(b) Que tem alguma Pomba-Gira encostada em nosso corpo sexy e sensualmente… normal;

(c) Uma completa sensação de impotência e nojo;

(d) Ah, larga a mão de ser babaca e assinala logo a resposta (c), porque essa bagaça não é revista Teen!

Ao contrário do que muitos homens gostam de dizer por aí, a maioria de nós, mulheres, não se sente prestigiada ou enaltecida ao ser assediada na rua por um sujeito que ela não conhece e, tampouco, tem a intenção de conhecer.

Não nos vestimos para agradar aos desejos sexuais dos homens, por isso não nos interessa quais são suas opiniões ou desejos diante de nossos corpos, simplesmente, porque não somos corpos, somos pessoas, que possuem sentimentos e, também, medos. E um dos medos constante na mente de qualquer mulher é o abuso sexual, que pode começar com uma aparentemente inofensiva “cantada”. Segue abaixo um relato:

Hoje um cara achou que seria bacana enfiar a mão na minha genitália. Não aquela roçada que vez ou outra a gente leva. Foi a mão. Quase embaixo da minha saia. E eu gritei. E esperneei. E sabe o que aconteceu? Nada. Ele saiu sorrindo numa estação depois da que eu comecei a gritar e eu fiquei lá. Talvez devesse ter descido e chamado a segurança.

Eu segui minha viagem (não sei se deveria ter descido, se deveria ter descido a mão na cara dele…) e ouvi, até descer no Maracanã que “Aposto que é baranga que está reclamando”. E ver ou as pessoas rindo do que aconteceu ou completamente indiferentes. Nenhum olhar de indignação, nenhum olhar de compreensão com o que aconteceu.

E é isso aí. Ser mulher é isso aí. A qualquer momento alguém que você não conhece, não deseja, em uma situação que você não conhece e não deseja pode enfiar a mão na sua genitália e é tudo normal.

No entanto, parece que não estou dizendo qualquer novidade, afinal não serei a primeira nem a última a constatar que os alvos favoritos desses assediadores são meninas e não mulheres adultas. Acredito que isso ocorra porque a maioria das meninas, assim como eu quando estava em faixa etária similar, não sabe bem como reagir diante dessa atitude que alguns homens encontraram para expressarem posse e poder.

Muitas de nós fomos educadas para não respondermos a estranhos, sobretudo do sexo masculino. Fazemos, como nos ensinaram, damos um jeito de escapar ou minimizar os olhares, procuramos trafegar por ambientes movimentados, preferencialmente em companhia de amigos homens, dentre outros “truques”, que não são desconhecidos de nenhuma mulher.

"American Girl in Italy". Imagem da fotógrafa Ruth Orkin, 1951

Por que estou falando de tudo isso agora? Incrivelmente, havia conseguido me esquecer da profunda sensação de impotência e nojo que assediadores já provocaram em mim, mas eis que, tempos atrás, vi um senhor com cerca de 60 anos, “cantar”, descaradamente, duas meninas de, no máximo, 14 anos. Um senhor, mal aguentando se segurar na baliza do metrô, estava assediando (inclusive com toques), duas meninas na minha frente e na de quem mais quisesse ver.

Eu estava sentada e, a princípio, não acreditei no que estava presenciando. Em seguida, pensei que ele estivesse alcoolizado ou drogado, o que não justificaria o abuso, mas tornaria compreensível o desembaraço do assediador ao praticá-lo. Fiquei por um bom tempo imaginando formas para não ter de encarar aquele fato, logo, não ter de encarar essa sensação de nojo tão fortemente reprimida em mim, mas enfim, era inevitável aceitar que, aos olhos de alguns homens, por mais que nos emancipemos, seremos sempre corpos à sua disposição.

Eu vi quando as meninas entraram alegres no vagão. Estavam conversando sobre os garotos de sua escola, ou seja, sobre o início desejado de suas vidas afetivas. Até que o pavoroso senhor surgiu e, sem cerimônias, encostou-se nas meninas. Conforme as investidas do assediador prosseguiam e intensificavam-se, mais elas se encolhiam, olhando-se entre si, sem entenderem bem o que se passava. Ou, talvez, entendendo muito bem o que se passava e, assim como eu, desejassem ardentemente que aquilo não estivesse acontecendo ali com elas, comigo, com todas nós.

O que eu fiz diante do fato? Nada! Eu, que costumo ser tão destemida, não fiz nada, a não ser me levantar e ficar calada entre as meninas e o assediador. Só queria que aquela aberração parasse, nada mais… Por isso fiquei lá inerte, servindo de obstáculo à audácia daquele sujeito. Mas precisei seguir meu caminho. Todas precisamos.

Quando saí do vagão, fiquei esperando o trem partir, para ver como as meninas se arranjariam. Para minha frustração, o vagão continuava lotado e, apesar de as meninas terem se movimentado, o idoso continuava colado nelas. Fiquei furiosa pensando: _Devia ter descido a sacola de livros naquele velho safado!

Se bem que, do jeito que o assediador estava só no caniço, se eu apenas relasse minha mão nele, o mais provável seria ele tombar ali mesmo (Lápide: Aqui jaz um velho machista e assediador!). Pois é, parece que nem com muitos anos de vida, os homens deixam de se achar no direito de nos assediar. Mesmo sem efetuar o ato sexual, ele estava ali, exercendo sua virilidade moral sob corpos femininos.

Evidentemente, o assédio de meninas tão jovens quanto essas com as quais topei no metrô é algo que tende a me chocar sobremaneira. Todavia, sei muito bem que mulheres mais maduras também são assediadas diariamente nas ruas. Não importa a roupa que estejamos usando, o trajeto que façamos e nem mesmo que estejamos acompanhadas de outro homem. Nossos “truques” não nos preservam de todos e quaisquer assédios. Talvez, dificulte-os, mas nada impede a audácia de alguns homens.

A petulância dos assediadores é tanta, que alguns acham que podem escolher com que tipo de homem dado tipo de mulher deve andar. Se eles julgarem que uma mulher é “muita areia para o caminhão” do homem que a acompanha, supõem-se no direito de assediá-la. Exatamente, nós não podemos andar com qualquer homem, é preciso que ele seja mais alto e mais musculoso que nós. Isso tudo para agradar ao conceito de “merecimento” de outros homens acostumados a assediar menininhas nas ruas. É muita patrulha sexual para pouco agente sexual!

Acho que o pior de tudo nem é que esses sujeitos se sintam no direito de nos assediarem, de patrulharem com quem escolhemos andar, mas o fato constituído historicamente de não podermos lhes responder à altura. O cara nos assedia, nós abaixamos a cabeça, mudamos de calçada e aceleramos o passo. Mais adiante, outro cara nos assedia, abaixamos novamente a cabeça, rezando para ele desencanar. Podemos seguir sendo assediadas nos transportes públicos, no cinema, no teatro, na faculdade, no ambiente profissional, etc. Onde houver um homem machista e uma mulher poderá haver assédio. Os assediadores podem mudar, mas nossa atitude costuma ser sempre a mesma, a passividade.

Sermos passivas diante do assédio sistemático significa aceitarmos que os homens possuem algum direito sob nossos corpos, o que não é verdade! Por isso, proponho que passemos a avaliar cada assédio como uma forma de verbalizar nosso empoderamento. Não sei se terei disposição para sair respondendo a todos esses cretinos assediadores, mas, a partir de hoje, coloco-me como desafio ir vencendo, paulatinamente, esse pequeno poder que eles acreditam que podem exercer sobre mim. Estendo esse desafio a todas as mulheres que, em algum momento, também chegaram à conclusão de que o prazer do assediador só pode lhe causar um sentimento, nojo.