Laqueadura tubária: um bom método contraceptivo?

Recentemente, vi uma matéria do Correio Braziliense entitulada: Mulheres ainda precisam de autorização do cônjuge para cirurgia de ligadura. Decidi investigar se era mesmo verdade, porque não tenho acesso a matéria completa do jornal.

Descobri que a Lei 9.263 de janeiro de 1996, que regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece várias regras para uma pessoa se tornar apta a realizar alguns procedimentos de esterilização cirúrgica como método de contracepção. Porém, a autorização do cônjuge, pelo que entendi, só é necessária quando há sociedade conjugal. Acredito que essas regras também valem para casais homossexuais que tenham união estável. As regras para realizar uma laqueadura ou vasectomia são (grifos meus):

I – em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce;

II – risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos.

§ 1º É condição para que se realize a esterilização o registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado, após a informação a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes.

§ 2º É vedada a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores.

§ 3º Não será considerada a manifestação de vontade, na forma do § 1º, expressa durante ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente.

§ 4º A esterilização cirúrgica como método contraceptivo somente será executada através da laqueadura tubária, vasectomia ou de outro método cientificamente aceito, sendo vedada através da histerectomia e ooforectomia.

§ 5º Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.

§ 6º A esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, regulamentada na forma da Lei.

Observando a lei, é possível imaginar que uma mulher de 26 anos, solteira e sem filhos possa realizar uma laqueadura tubária. Da mesma maneira, uma mulher de 19 anos casada que tem dois filhos e a autorização do marido também estaria apta. Porém, há inúmeros fatores que influenciam a questão. Há a recusa dos médicos em realizar procedimentos esterilizadores em pessoas sem filhos ou muito jovens. E os casos de arrependimento em esterilizações realizadas precocemente, ou de forma compulsória.

Há o Projeto de Lei 313/2007, que pretende alterar a Lei 9.262, acabando com a obrigatoriedade da autorização do cônjuge e modificando a idade mínima para 23 anos, desde que a pessoa já tenha dois filhos. Mas me pergunto: a laqueadura é uma boa solução contraceptiva?

O que é laqueadura?

Laqueadura é um processo de esterilização definitiva, que consiste no fechamento das tubas uterinas para impedir a descida do óvulo e a subida do espermatozoide. As trompas são cortadas e suas extremidades amarradas de tal forma que a passagem dos espermatozoides fica bloqueada na sua porção mais distal e a do óvulo bloqueada na porção mais proximal.

A chance de reverter o procedimento de forma satisfatória é pequena. A laqueadura é um procedimento cirúrgico, que recentemente ganhou novas técnicas que dispensam cortes, anestesia e internação. Só no Distrito Federal, há uma fila de espera de 1,2 mil mulheres.

A esterilização feminina provocou polêmica desde o seu surgimento por envolver aspectos políticos, éticos, religiosos, demográficos e sociais. A sua prevalência foi apontada como principal causador da queda da taxa de crescimento populacional entre as décadas de 60 e 90. Mesmo com as polêmicas, tem sido considerado o método de contracepção mais utilizado no mundo. Segundo levantamento feito pelas Nações Unidas, 2, 21% de todos os casais adotaram a esterilização feminina como opção contraceptiva. O segundo método mais utilizado é o DIU, 14%. Seguido pela pílula, utilizada por 7% das mulheres casadas ou em união consensual.

Inauguração do Hospital da Mulher no Rio de Janeiro. Foto de Vitor Silva/Jornal do Brasil.

Números da laqueadura no Brasil

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil tem um dos maiores índices de laqueaduras do mundo, com 40% das mulheres em idade reprodutiva esterilizadas, ao lado da Índia e China. Em 2008, foram realizadas 61.847 laqueaduras no Sistema Único de Saúde (SUS). Lembrando que tanto a laqueadura, quanto a vasectomia, são procedimentos cobertos por planos de saúde.

Até a década de 60, as esterilizações sofreram muitas críticas, e sua utilização permaneceu limitada. Entretanto, a partir de 1970, foi ganhando popularidade, e seu emprego se espalhou pela Europa, Ásia, América Latina e Estados Unidos. Nos Estados Unidos, entre as mulheres casadas em idade reprodutiva, 14% dos parceiros se submeteram à vasectomia e 24% delas estão esterilizadas; na Europa, o percentual de mulheres laqueadas nessa mesma condição é bem menor: 6% na França, 7% na Inglaterra e 4% na Itália.

O Brasil tem um dos mais altos índices de esterilização feminina do mundo, pois cerca de 40% das mulheres em união estável, de 15 a 49 anos, estão esterilizadas, enquanto apenas 2,6% dos homens se submeteram à vasectomia. Referência: Fatores associados ao futuro reprodutivo de mulheres desejosas de gestação após ligadura tubária (.pdf).

Dados demográficos nacionais mostram que a prevalência da laqueadura em 1996 era de 21,1%, na faixa etária de 25 a 29 anos, e de 37,6%, em mulheres entre 30 e 34 anos de idade. Os motivos principais para a realização da laqueadura costumam ser o desejo de não ter mais filhos, falta de condições de criá-los ou já ter o número ideal de filhos.

Os fatores que estão associados à utilização da esterilização em nosso país são múltiplos: falta de acesso e/ou informação acerca dos métodos contraceptivos reversíveis, precariedade dos serviços de planejamento familiar, percepção da esterilização como forma de ascensão social, uma cultura baseada na desresponsabilização masculina em relação à contracepção, entre outros. Esses fatores, aliados a alta eficácia atribuída ao método, têm contribuído para a elevada prevalência de mulheres esterilizadas observada no Brasil.

Uma das consequências da esterilização pode ser o arrependimento, conceito subjetivo que, inclusive, pode mudar ao longo do tempo. Entende-se o arrependimento após a esterilização como uma mudança em relação à decisão de encerrar a vida reprodutiva. Referência: Arrependimento após a esterilização feminina no Brasil.

O arrependimento e a falta de informação

Os índices de arrependimento costumam ser maiores entre mulheres de 20 a 29 anos. Sendo a maior causa de arrependimento, a troca de parceiro e o desejo de futuras gestações. Entre as mulheres de qualquer faixa etária, que buscaram contracepção cirúrgica, cerca de 60% mudaram de opinião, optando por outras alternativas quando orientadas e bem informadas.

Estudos mostraram que a morte de filhos, novo casamento, idade da mulher no momento da esterilização, problemas conjugais, pouco conhecimento sobre os métodos reversíveis e escolha do método sob pressão do companheiro são fatores ligados ao arrependimento. Dos fatores citados, a associação mais importante é entre a idade da mulher no momento da esterilização e a probabilidade de arrependimento posterior. Outro fator que pode contribuir para o arrependimento é a falta de informações adequadas acerca da irreversibilidade do procedimento. Referência: Arrependimento após a esterilização feminina no Brasil.

Esses dados mostram que a informação é fundamental para que a decisão seja tomada com menos chances de arrependimentos. Ao mesmo tempo, não podemos pensar em retirar das mulheres o direito a esse procedimento. Há inúmeros problemas no atendimento público de saúde no Brasil que tem como consequência uma fila enorme de mulheres que querem realizar a laqueadura tubária, mas são impedidas pelos profissionais de saúde, como cita o médico Drauzio Varella:

Sabemos que, por falta de leitos públicos, entre a internação de uma mulher com um tumor uterino e outra para laqueadura o médico é forçado a escolher a primeira. É evidente que não me refiro a esses casos, mas àqueles em que nossa boa vontade é fator decisivo.

A mãe de sete filhos aos 30 anos, que preenche todos os requisitos para a laqueadura e que espera anos sem ser chamada, quando tem a felicidade de ver o médico, muitas vezes ouve que ainda é jovem, que irá se arrepender, que o marido poderá morrer e ela casar com um rapaz sem filhos. A regra é fazer o possível para demovê-la da intenção e não mover uma palha para agilizar a paquidérmica burocracia dos hospitais públicos.

O desconhecimento generalizado da existência de uma lei federal que trata do planejamento familiar não enobrece nossa profissão. Por lei, todas as brasileiras em idade reprodutiva têm o direito de receber anticoncepcionais de graça pelo SUS. Isso inclui meninas de 11 anos que menstruaram pela primeira vez. Referência: A meus colegas médicos.

São visíveis as dificuldades em conseguir realizar o procedimento. De um lado, a saúde reprodutiva das mulheres é desprezada pelo estado. De outro, as esterilizações feitas precocemente em mulheres sem acesso pleno a informação acabam resultando em arrependimento. Essa situação reforça a importância de fortalecer o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), que deveria incluir também perspectivas de saúde para mulheres lésbicas e trans*.

O acesso aos métodos contraceptivos reversíveis e a educação sexual são fundamentais para mudar a realidade de quem procura a esterilização como método contraceptivo, sem estar ciente de todas as consequências.

Foi de 10,5% a proporção de mulheres arrependidas após a esterilização e as mulheres jovens e de baixa escolaridade foram as que apresentaram maior chance de se arrepender.

É possível que as mulheres mais jovens não ponderem todos os elementos envolvidos na decisão pela esterilização. Essas mulheres ficam mais tempo do seu ciclo reprodutivo expostas a mudanças em sua vida que podem resultar em arrependimento. Para as mulheres em foco, a ampliação do acesso aos serviços de saúde, com profissionais experientes e capacitados, principalmente nos serviços de aconselhamento, poderia ser o caminho mais rápido e eficaz para a redução das taxas de arrependimento. Referência: Arrependimento após a esterilização feminina no Brasil.

Aspectos sociais e econômicos em questão

A política de planejamento familiar no Brasil é muito restrita e pouco divulgada, além de ter um caráter heteronormativo. É visível que a desinformação em relação a métodos contraceptivos ainda é grande.

Importante ressaltar que a esterilização da mulher de classe média é diferente da esterilização da mulher de baixa renda em termos de motivações, acesso e compreensão da situação e informação. Da mesma maneira, a esterilização da mulher que vive em centros urbanos, é diferente da mulher que vive na área rural. Além, das diferentes motivações que podem levar uma pessoa lésbica ou transexual a procurar um método contraceptivo de esterilização. É preciso compreender essas diferentes demandas em um plano de direitos reprodutivos e sexuais, e respeitar decisões individuais.

Em várias cidades do Brasil, a laqueadura é usada como moeda de troca eleitoral. Candidatos a cargos políticos prometem a mulheres pobres que tem muitos filhos esterilizá-las. Um estudo revelou que 77% das esterilizações feitas em mulheres nordestinas, no período entre 1987 e 1996, foram pagas por políticos e médicos. A ausência do Estado, que não possui uma política de planejamento familiar, associada à pobreza da população e a um esquema eleitoral que permite o clientelismo político são as principais razões para a permanência desse tipo de situação.

Muitas pessoas acreditam que a esterilização em massa das mulheres pobres, especialmente as negras, resolveria o problema da miséria social. Essa proposta foi retomada recentemente, com o aumento das usuárias de crack no país. Porém, é preciso respeitar direitos humanos, sociais e reprodutivos. Além, de não fomentar uma política de higienista. Toda pessoa deve ter o direito de decidir sobre os aspectos relacionados a sua reprodução. Para isso é preciso prover educação sexual e acesso a métodos contraceptivos para todas as pessoas.

A história obstétrica evidenciou uma alta média de gestações, favorecida pela escassa utilização pregressa de métodos contraceptivos reversíveis e início precoce da vida sexual, alta frequência de abortos e partos cesarianos, apesar da prevalência de partos vaginais. Percebe-se que a escolha por um método cirúrgico foi o desfecho de uma trajetória ginecológica e obstétrica diferenciada, marcada por questões de gênero no planejamento familiar, pouco esclarecimento e experiência dos meios de conduzir com autonomia sua vida sexual e reprodutiva.

As peculiaridades do grupo estudado ratificaram a necessidade de estratégias capazes de empoderar essas mulheres em suas decisões a respeito do planejamento familiar, respeitando o princípio da autonomia. Mas, para que essa mulher opte pelo método contraceptivo mais adequado, é necessário que os serviços de planejamento familiar disponibilizem outras opções, com garantia de continuidade do método selecionado. Referência: História reprodutiva de mulheres laqueadas (.pdf).

Direitos reprodutivos referem-se ao direito de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos, bem como o direito a ter acesso à informação e aos meios para a tomada desta decisão. Já os direitos sexuais dizem respeito ao direito de exercer a sexualidade e a reprodução livre de discriminação, coerção ou violência. A esterilização compulsória é a violação total desses direitos.

Concluo que muitas mulheres parecem optar pela laqueadura por não terem acesso direto e seguro a outros métodos contraceptivos reversíveis. Essas mulheres em grande parte tem menor escolaridade e costumam fazer a escolha sem ter outras opções. Quanto mais métodos contraceptivos existirem melhor. Porém, é essencial um programa de planejamento familiar amplo e instrutivo, com ênfase em estratégias educativas. E, que alcance pessoas em período fértil de todas as idades. Para que haja uma escolha contraceptiva adequada e consciente. Além, de uma política de direitos reprodutivos que respeite a autonomia das pessoas. O lema deve ser sempre: “Educação sexual para decidir, contraceptivos para não abortar, aborto legal para não morrer”.

Para saber mais:

[+] Esterilização feminina, AIDS e cultura médica: os casos de São Paulo e Porto Alegre.

[+] Esterelização feminina no nordeste brasileiro: uma decisão voluntária? (.pdf)

[+] O planejamento familiar no Brasil no contexto das políticas públicas de saúde: determinantes históricos.

[+] O movimento de saúde e direitos reprodutivos no Brasil: revisitando percursos.