A verdade cisgênero

Texto de Jaqueline Gomes de Jesus.

Tentarei escrever da maneira mais didática possível.

Foi uma sacada excelente a de quem, lá pelos anos 2000, resolveu utilizar a palavra “cisgênero” para se referir a pessoas não-trans. Logo foi adotada, às vezes como “cissexual” (dizem que o primeiro a cunhá-la foi o sexólogo, físico e sociólogo alemão Volkmar Sigusch), por autoras como Julia Serano, além de militantes — especialmente as transfeministas — e acadêmicos anglófonos.

Para as pessoas transgênero bem informadas, sempre soou estranho, por exemplo, chamar pessoas não-trans de “heterossexuais”, óbvia analogia a “homossexuais” (reafirmando a confusão comum entre orientação sexual e gênero). Nem toda pessoa trans é homossexual, e nem toda pessoa que não é trans é heterossexual.

Representação de Maat, deusa egípcia da verdade.
Representação de Maat, deusa egípcia da verdade.

Particularmente para as pessoas trans transfeministas (não estou sendo redundante), sua experiência de vida, e o conhecimento que tinham de como o termo “transgênero” — originalmente criado por pessoas cisgênero que objetivavam o controle sobre corpos — ou “trans” era usado, mostravam-lhes que, no dia-a-dia, mais que ser tão-somente uma marca aplicada às pessoas que não se identificam com o gênero que lhes era imposto socialmente; por parte das pessoas que não são trans, ao se reconhecerem como tais, a definição do outro como trans não era acompanhada de um posicionamento grupal frente a essa construção social chamada “gênero”.

Quero dizer, as pessoas não-trans não percebiam que também tinham identidade de gênero; e que detinham privilégios em função disso.

Constatou-se que era politicamente necessário, para a humanização das pessoas trans e para a aproximação das pessoas não-trans com os debates em pauta, que estas pudessem ser nomeadas positivamente (isto é, que se vissem além de um “não”).

Trans significa além. Logo, sabendo-se que o seu antônimo “cis” significa “deste lado”, criou-se, por contraposição, a palavra “cisgênero”, aplicada às pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi imposto socialmente.

Eis uma ideia que se insurge contra saber aceito e compartilhado acerca das identidades de gênero. Mais que uma palavra, cisgênero é um posicionamento. E ressalte-se, quando falamos em “cisgeneridade” estamos nos referindo a uma identidade social, e não apenas a uma expressão de gênero.

No Brasil, ele vem sendo progressivamente utilizado, não apenas por transfeministas, e com uma surpreendente velocidade de apropriação. Nesse ritmo, notam-se algumas reações contrárias à sua adoção, que por vezes são emotivas e chegam ao rechaço.

Se parte das críticas advém de grupos que advogam a abolição de identidades, sob a influências daS TeoriaS Queer, e temem que se possam estar marcando novos estigmas (discordo, conhecendo os estudos feitos no campo dos estigmas desde Erving Goffman. As palavras estigmatizantes decorrem de estigmas que as antecederam na estrutura social, e não vice-versa); e outra de quem não se sente incluído nessa categoria (poderá vir a se sentir, quem sabe); uma parcela, sinceramente, aporta de quem duvida que pessoas trans possam dizer verdades ou encarná-las.

Posso estar enganada, mas compreendo que estamos em uma fase de repúdio da verdade cisgênero.

O filósofo alemão Arthur Schopenhauer escreveu que toda nova verdade passa por três estágios: (1º) ridicularização, (2º) rejeição e, por fim, aceitação.

“Isso é um absurdo”! A verdade da cisgeneridade não é mais tida como trivial, o que leva à ridicularização. Essa etapa ocorreu, quando era ideia era alvo de críticas superficiais e costumeiramente mal-educadas por parte de usuários da internet, alguns militantes sociais.

Suponho que certas pessoas discordam do termo “cisgênero” ou “cis” por pensarem que ser trans é apenas uma questão de aparência, e não percebem que ser cis é, igualmente, apresentar uma aparência, mas que essas aparências são oriundas de formas de se colocar no mundo e de ser (ou não) reconhecidas.

Foi superado esse momento (sou otimista). Quem critica hoje argumenta, não apenas vocifera ou defende o senso comum preconceituoso.

“Isso é verdadeiro, porém perverso ou desnecessário”! Assim, a verdade cisgênero é questionada, tida como anti-dogmática frente às concepções científicas prevalecentes sobre gênero. Um paradoxo para a pós-modernidade, não? Existem bíblias para além da Bíblia…

Parece-me uma transição rápida, entre ridicularização e rejeição. Os defensores do uso do termo seguem lutando pelo seu reconhecimento, e se a suposição de Schopenhauer estiver correta, em breve leremos e ouviremos, até mesmo por quem se opôs, que “transgênero” e “cisgênero” — apesar das sombras e borrões que existem entre eles — são verdades auto-evidentes: “Isso sempre foi verdade, eu sempre disse que era uma boa ideia”!

No dia em que pessoas trans tiverem os mesmos privilégios das cis, aí sim esses termos não terão mais sentido. Por enquanto, isso está bem longe de acontecer.

 Autora

Jaqueline Gomes de Jesus é psicóloga, com doutorado em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília. Escreve no blog Jaqueline J.

Esse texto faz parte da Blogagem Coletiva pelo Dia da Visibilidade Trans, organizada pelo site Transfeminismo.