O feminismo é tão diverso quanto as próprias mulheres. Temos diferentes histórias, interesses e circunstâncias.
Eu sou uma mulher de meia-idade (você sabia que a meia-idade começa aos 35?), divorciada, independente, com um filho lindo quase criado e uma carreira profissional consolidada. Trago em mim a história das mulheres da famílias, e essa história determinou o que eu sou, ainda que eu tenha seguido caminhos diferentes.

Venho de uma família de bordadeiras. Minha mãe nasceu numa cidade minúscula do interior de São Paulo chamada São Pedro. As meninas aprendiam a bordar desde cedo para ajudar no sustento das famílias. Meus avós não tinham uma vida fácil, e minha mãe conta que, aos 5 anos de idade, já queimava os braços para mexer o caldeirão de polenta em cima do fogão a lenha. Depois das tarefas domésticas, as mulheres sentavam para bordar e produziam trabalhos de beleza e complexidade impressionantes.
Na imensa maioria das famílias o homem era e continua a ser o provedor e, como tal, quem toma as decisões. Minha mãe não teve permissão para estudar além da quarta série do primário, porque segundo meu avô, mulher tinha que trabalhar para ajudar a família e não estudar. Mesmo assim, minha mãe sempre foi uma mulher curiosa e inteligente, que encontrou meios de aprender e empreender várias atividades artesanais e assim ter alguma renda, ainda que pequena e inconstante, quando depois de casada, meu pai exigiu que ela parasse de trabalhar para criar as filhas.
Muitas mulheres se valem da economia informal e caseira para obter alguma independência financeira, muitas vezes até para sustentarem sozinhas os filhos. Já na maturidade, meus avós viveram em cidades separadas, embora nunca tenham se separar formalmente. Nessa época, minha avó passou a vender enxoval (que é como as pessoas de antigamente se referiam aos artigos de cama, mesa e banho) trazidos de São Pedro. A lembrança que tenho dela então é a de uma mulher frágil que saía toda tarde para visitar as “freguesas” carregando duas pesadas sacolas de lona, disposta e conhecida por todos no bairro.
Apesar da origem modesta, meus pais investiram na nossa educação, e é graças ao esforço deles, permeado por uma certa consciência meio difusa da situação opressiva da mulher, que fui criada para ser independente e assim me tornei o que sou hoje. E embora eu tenha uma vida muitíssimo mais privilegiada do que a minha mãe e avó e todas as mulheres antes delas tiveram, eu carrego dentro de mim e valorizo os saberes que herdei delas.
É um pouco contraditório (mas totalmente compreensível) que, ao mesmo tempo que eu tenha sido incentivada a perseguir uma carreira, também tenha aprendido todas as habilidades que se esperavam de uma mulher à época da minha avó: cozinhar, cuidar da casa, costurar, fazer trabalhos manuais. E eu sempre gostei e fiz de tudo um pouco. Entendo que, para muitas feministas jovens, pode parecer incoerente valorizar atividades que estão tão fortemente associadas à opressão histórica da mulher, que já não têm valor na nossa sociedade. Mas não posso deixar de pensar que, mesmo dentro um sistema altamente patriarcal, mulheres como minha mãe e minha avó se valeram de suas habilidades para driblar, na medida do possível, a impossibilidade de independência pela ausência de renda própria.
(Sem falar que a cultura popular representada pelo artesanato e trabalhos manuais é parte da expressão da história, beleza e poesia da nossa gente.)
Assim é que, no Brasil todo, ainda hoje milhões de mulheres não têm renda própria e estão sujeitas ao marido-provedor. Muitas sofrem violência doméstica e permanecem num casamento infeliz por conta da falta de independência financeira e também do moralismo social que ainda considera o casamento uma obrigação para a vida toda, quaisquer que sejam as circunstâncias.
A vida das mulheres que trabalham fora de casa não é muito melhor. Nos centros urbanos, o capitalismo levou muitas dessas mulheres para o mercado, para trabalharem exaustivamente, quase sempre em desvantagem em comparação com seus pares do sexo masculino, com salários mais baixos e sob maior pressão. Muitos empregadores preferem não contratar mulheres alegando que elas ficam grávidas, têm cólicas, alterações de humor, filhos que ficam doente. Nas cidades como São Paulo, as trabalhadoras de baixa renda sofrem com políticas públicas precárias de saúde e educação, falta de creches e um transporte coletivo sucateado. Um enorme contingente delas, principalmente as mulheres negras, está no mercado do trabalho doméstico, que é altamente desregulado e carente de direitos trabalhistas, assumindo o trabalho doméstico e a criação dos filhos de outras mulheres que dependem delas para sair de casa e trabalhar. Praticamente todas continuam a ser donas-de-casa e a se dedicarem aos próprios filhos depois do expediente de trabalho, pois na maioria dos lares brasileiros não existe uma divisão de trabalho doméstico justa entre os membros da família.
É natural que, diante de condições tão adversas e estressantes, a última coisa que a mulher encontra é tempo para bordar e costurar. Na verdade, não são só as tradições que se perderam. Vivemos cercados pelo estímulo ao consumo, bombardeados por propagandas e pressões sociais que tentam nos dizer que carro devemos ter, que marca de roupa devemos usar, que cartão de crédito devemos possuir para sermos felizes e bem-sucedidos. E para termos acesso a isso, precisamos trabalhar mais e mais.
O que está sob essa estrutura social equivocada é um sistema de exploração que procuramos ignorar. Há poucas semanas a imprensa mostrou o regime de escravidão moderna de que se valem marcas renomadas do mercado do vestuário, como Zara e outros. Outras cadeias de lojas, como Marisa e C&A, já foram autuadas pelo mesmo motivo. Não fica difícil imaginarmos que a maior parte do mercado de moda usa os mesmos subterfúgios para alimentar o consumismo, escravizando não só os trabalhadores, mas também os consumidores. E não nos esqueçamos que a vasta maioria dos trabalhadores nas oficinas de costura, sejam clandestinas ou não, é de mulheres.
Nosso grupo tem sempre debatido as práticas de trabalho escravo e outros aspectos relacionados à moda, como o consumismo, as consequências desse sistema de produção para o meio ambiente e as imposições estéticas de um mercado que valoriza a mulher jovem e magra em detrimento de todos os outros biotipos.
Graças a este grupo maravilhoso de Blogueiras Feministas, eu passei a entender muito melhor a realidade das mulheres. Também passei a ter um novo olhar sobre a história das mulheres da minha família e de milhões de outras Brasil afora, que desenvolvem produções lindas, criativas, exclusivas e sustentáveis e contribuem para manter viva a cultura brasileira expressa no artesanato e nos trabalhos manuais. Muitas obtêm sua autonomia e independência financeira com essas atividades, mas milhões de outras ainda carecem de estrutura e incentivo.
Disso tudo brotou um sonho: ajudar mais mulheres empreendedoras a ter sucesso em seus negócios, ao mesmo tempo oferecendo alternativas às consumidoras que rejeitamos o sistema explorador e desumano da indústria do vestuário. Mas como fazer isso? Dentro do grupo está nascendo um pequeno núcleo, composto inicialmente por mim, pela Bárbara Maues e pela Fabiana Nascimento, que quer mapear uma parte dessas produtoras e referendá-las às consumidoras conscientes. Não se trata de outra iniciativa de e-commerce, muito menos de algo grandioso. Apenas queremos contribuir para o consumo mais sustentável, humano e justo. Quer participar? Será um prazer termos mais gente envolvida nessa iniciativa!