Por que precisamos falar sobre assexualidade

Texto de Renata Be.

A assexualidade começou a me interessar há pouco tempo, quando soube do (A)sexual, documentário feito pela americana Angela Tucker (em pequena circulação somente nos Estados Unidos). Desde então, além de estudar sobre o assunto, passei a prestar atenção toda vez que alguém se refere aos assexuais no Brasil e percebi que sempre se usa o termo “assexuado”. Palavras ou definições certas não são o ponto principal em muitos casos, mas neste é bom esclarecer pelo menos a diferença entre termos, assim como é feito com homossexualismo/homossexualidade.

Das informações básicas, entende-se que assexuado é quem não tem sexo definido e assexual não experiencia atração sexual. Até em dicionários há confusão, quase todos colocam as duas palavras como sinônimos. Para muitos, a palavra assexual simplesmente não existe. Não há muitos estudos sobre assexualidade no mundo e, até agora, só a pedagoga Elisabete Regina Baptista de Oliveira está se especializando no assunto no Brasil (ela tem um blog excelente: Assexualidades). Muito do que aprendi foi pela paciência que ela teve em tirar algumas dúvidas minhas.

Segundo alguns estudos, nenhuma patologia foi encontrada nos assexuais, ou seja, não há nada de errado neles. É como ser hétero, homo, bi, etc: não há uma causa, a pessoa é/está. É possível que um heterossexual passe a vida toda feliz assim e, de repente, conhece alguém do mesmo sexo por quem sente atração. É confuso porque nunca passou pela cabeça dele/a, mas aceita que é possível e entende que também pode viver feliz assim. É uma escolha aceitar essa possibilidade quando ela aparece, mas não foi escolha isso acontecer.

Escolha é se a pessoa se identifica como assexual ou sexual. Ou então o celibato. Isso é bem dito no site da AVEN (Asexual Visibility and Education Network), primeira comunidade virtual para assexuais do mundo todo. A intenção do site, criado pelo David Jay (um rapaz sensacional e foco do (A)sexual), é fazer com que exista uma ferramenta pra ajudar as pessoas a se entenderem melhor, a se descobrirem, e não exatamente que elas tenham uma palavra, uma categoria que as defina (algo que não deveria ter pra ninguém).

Por que a única forma de pensarmos é a que a sexualidade existe e não que ela TAMBÉM existe? Isso ficou bem mais claro pra mim depois que falei com o Júlio, responsável por um outro blog brasileiro: Sim… Assexual. E daí?. Cito um trecho de uns dos e-mails dele:

É muito fácil falar “chupei um homem hoje”, “ele me comeu até me deixar doida”, “transamos assim, assim e assim”, “eu adoro transar de ladinho”, “fico louco por caras de barba”, etc, etc, etc. Mas como falar que não sinto tesão pelo meu namorado? Que não gosto de fazer sexo com minha esposa? Como dizer que sinto carinho, mas não desejo por alguém? Ou como dizer que sinto desejo mas não me sinto realizado com aquilo? Ou como dizer que sinto excitação, mas nem entendo o que é desejo?

Imagem: Deviantart/CaptainEvie

Não há definição exata, um “é só isso”. Nem todos os assexuais se definem com ausência de atração sexual, já que atração sexual não significa atividade sexual — e muitos não são interessados na atividade sexual. Outros dizem não sentir desejo. E muitos têm relacionamentos afetivos com pessoas assexuais ou não — sem que a sexualidade esteja presente, porque ela não faz parte de algumas pessoas. Sexualidade não nasce com a gente. Não existe o anormal porque, pra existir, precisa ter o normal, o padrão. E qual é o padrão? Em quê nos baseamos pra validar o que nos é diferente? E por que achamos que temos tal direito? Foi comprovado, por exemplo, que alguns assexuais se masturbam tanto quanto quem é sexual. Ou seja, eles também podem sentir excitação. Quem garante que todos os aspectos da sexualidade ou assexualidade se encontram num mesmo lugar?

A assexualidade deve ser entendida da mesma forma que a sexualidade: como algo real e imensamente complexo. Alguns assexuais não sabem o que de fato sentem/são por vários fatores, principalmente culturais. Existem também os que se descobrem assexuais bem mais velhos. Mas nenhum é obrigatoriamente assexual por ter sofrido abuso, por algum trauma ou bloqueio. Ou por um problema hormonal. Em um dos e-mails que trocamos, a Elisabete Oliveira comentou um pouco sobre a questão dos hormônios:

Digamos que um jovem assexual de 25 anos faça exames de hormônio e descubra que tem uma deficiência hormonal (mesmo assim, isso não quer dizer que a assexualidade é causada pela deficiência de hormônio). Esse jovem tem um problema? Viveu 25 anos sem sentir atração sexual e isso nunca foi problema. De repente, descobre que tem uma deficiência hormonal. Como fica? Faz tratamento? Se a falta de desejo nunca foi problema para ele, não há motivo para fazer tratamento e depois ficar totalmente perdido, sem saber como viver num mundo sexualizado. Eu já vi casos de pessoas assexuais que fizeram testes hormonais e se trataram da deficiência, mas nada mudou. Continuaram sem sentir atração. Isso põe em cheque a teoria dos hormônios.

A mim soa como uma reação meio ofensiva concluir que a única forma de alguém diferente de nós existir é se tiver alguma disfunção ou distúrbio. Não é um todo, são indivíduos. Não precisamos de explicação para o porquê de existirem, precisamos explicar que existem. Mesmo não sendo assexual, consigo entender o que é ser, e não só por isso jamais vou negar sua existência. Seria como anular pessoas. Será que só sentindo na pele pra poder entender que algo improvável pra algumas pessoas é real? Acho que seria o mesmo que muitos héteros fazem com bi, homo, etc. Não entendem que sexualidade não é só o básico que conhecem, então rejeitam tudo que não faz sentido ao seu padrão. Mas o que esquecem é que nem eles vivem de um padrão só.

Na primeira resposta do Júlio já aprendi muito mais que aprenderia se continuasse a pesquisar sozinha. Ele me explicou muita coisa, algumas sem mesmo eu perguntar (o que me leva a concluir que eles têm muito a dizer, um enorme conhecimento pra educar e pouco espaço, pra não dizer mínimo, entre quem não é assexual). E parece que só no Brasil se usa assexuado pra falar sobre assexual. O que ele me disse foi:

Geralmente o termo é usado com todo tipo de sentido pejorativo possível. Pessoalmente odeio esse termo. Mas muitos assexuais no Brasil usam sem problema algum porque não entendem seu sentido e o contexto político mais amplo.

Ninguém é heterossexuado ou homossexuado, por que chamá-los de assexuados, ainda mais quando essa palavra já tem um conceito totalmente diferente? Todos precisamos nos educar sobre o assunto, inclusive os assexuais.

Enviei o primeiro e-mail ao Júlio com a intenção de saber como ele e outros assexuais que conhece se sentem quando são chamados de assexuados. E depois de algumas longas mensagens, acabei num pesado mas saudável questionamento sobre minha própria sexualidade. Ou seja, todos sempre temos mais a aprender tanto sobre nós como sobre os outros. A própria pessoa pode não conseguir ou querer definir o que sente/é, mas ela existe.

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Renata Be é feminista, ateia, bissexual, vegetariana.