Você é mulher. Então de um jeito ou de outro, em algum momento, vai escutar alguém fazendo algum comentário sobre seu relacionamento com o conjunto fogão & pia. Uma monitora lá do Local de Trabalho vai se casar ano que vem; aluna de primeiro ou segundo ano da graduação, ela come de dia no bandejão e à noite faz miojo. Adivinha se as colegas já não falaram “ih Fulana, você vai casar, e esse miojo aí?”… É brincadeira, mas a gente conhece o fundo de verdade das brincadeiras que rolam por aí. Há algum tempo ainda era bem mais comum que moças só saíssem de casa sabendo lavar, passar, limpar, tirar manchas (essa é definitivamente um conhecimento do qual a pessoa tem que se gabar. Falo sério!) e cozinhar. As moças, não os moços – porque esses sairiam de casa pra se casar com moças já devidamente instruídas nas artes domésticas. Ou então pagariam mulheres com essas habilidades e competências. Tá certo, isso ainda é bem comum.

Você é uma mulher feminista, vive em um lar feminista. Então de um jeito ou de outro, em algum momento, vai escutar alguém fazendo algum comentário sobre seu relacionamento com o conjunto fogão & pia. Como se o feminismo implicasse uma repulsa completa a tudo o que se relaciona ao lar, ao bom relacionamento com homens (incluindo seu marido, porque na cabeça de tanta gente o feminismo tem a ver com ódio aos homens), à maternidade. E então a boa feminista estereotipada não cuida de casa, não desempenha bem “funções” de esposa e mãe, não usa roupa feminina, não usa maquiagem, não gosta de sapatos bonitos, não arruma cabelo e não faz unhas e, claro, não cozinha. Eu perguntaria às pessoas que vivem nesse mundo encantado de pensamento por meio da lente da estereotipia como faz a feminista – coloca homens sob o chicote pra fazer o serviço todo? Mantém o marido e o filho presos em casa com bola de ferro no pé lavando, limpando e cozinhando pra ela? Ou essa criatura quase mitológica mora num covil imundo cheio de feministas machonas e fedidas que grunhem e coçam o saco imaginário o dia todo?
Eu sou mulher, sou feminista, vivo num lar feminista. Odeio serviço de casa, mas faço a parte deles que me cabe porque precisa ser feita. A exceção é cozinhar. Levei quase 18 anos de vida adulta para descobrir e admitir que gosto de cozinhar. Não faço isso todos os dias da semana, nem em absolutamente todas as refeições – você poderá me encontrar em restaurantes da cidade durante o final de semana ou na portaria pegando a entrega de uma pizza ou um lanche às vezes, mas de segunda a sexta você pode chegar aqui em casa por volta das 11 da manhã e vai me encontrar na cozinha, muitas vezes ouvindo música, e fazendo comida. Então nesse ponto me diferencio do pessoal que gosta de cozinhar mas só o faz aos finais de semana, experimenta pratos novos e tem utensílios descolados. Nada contra, claro, muito pelo contrário, são só estilos diferentes ;).
Sou uma cozinheira que usa panelas de alumínio da época do casamento dos pais, panelinhas com tampas azuis. Sou uma cozinheira que tem sempre uma chaleira de água quente no fogão, que herda eletrodomésticos, que deixa feijão de molho na véspera (opa, peraí, preciso fazer isso AGORA), que tem pratos e talheres baratinhos e minha culinária lembra muito aquela comidinha que todo mundo chama “de mãe”. Sou uma cozinheira feminista que detesta que cheguem na frente do fogão e mexam nas panelas ou nos botões do fogão, que não gosta de palpites e não gosta de cozinhar com louça suja em volta e nem de sair para o trabalho e largar a pia badernada. Meu menu não é predefinido, mas em geral se baseia na dupla arroz-feijão acompanhada de uma proteína, uma verdura e/ou legume refogados, uma ou mais opções de saladas. Não faço preparações complicadas, mas sei aprontar um almoço inteiro em até 40 minutos. E minha recompensa é ver todo mundo comendo bem, comendo direito, gostando da comida que preparei, é ver meu filho se interessando pela culinária.

Cozinhar é uma arte que transcende gênero e poder econômico e comer é também uma atividade social. A comida do dia-a-dia pode enjoar depois de um tempo e se beneficia muito com o conhecimento de variedades de alimentos e preparações simples, mas diversas, e que fazem parte de tradições regionais e familiares (recomendo fortemente a leitura do Come-se, blog da Neide Rigo, e do Chucrute com Salsicha, da Fezoca. São experiências de culinária e alimentação bastante inspiradoras, cada uma em seu contexto). Cozinhar me empodera não porque como mulher eu tenho a missão de zelar sobre a saúde da família ou sou a única detentora desse saber, decido o que vai ser degustado em casa e com isso exerço poder sobre as pessoas que estão à mesa comigo – essa é a lógica das pessoas que têm uma concepção equivocada a respeito tanto da posição das mulheres na família quanto a respeito do feminismo, é a ideia por trás da propaganda de pasta de dente, de arroz, de margarina. Cozinhar me empodera porque me permite transformar alimentos em uma refeição, experimentar receitas, aprimorar meu conhecimento a respeito de alimentos diferentes e das técnicas envolvidas no preparo dos alimentos, conhecer e colocar à prova o paladar de todos nós, contribuir para que todos tenhamos um estilo de vida mais saudável. Ficar na cozinha, “esquentando a barriga no fogão e esfriando na pia”, me permite pensar, refletir, fazer anotações mentais, rascunhar textos e imaginar conversas.
Não estou só: o Feministas na Cozinha é um blog tocado com sucesso por algumas das Blogueiras Feministas e existe um grupão sensacional no Facebook também iniciado por algumas de nós. Ele serve pra que troquemos figurinhas, dicas, palpites, receitinhas, relatemos histórias de sucesso culinário e choremos as pitangas sobre comida queimada, maionese desandada e temperos esquisitões. Somos feministas, fazemos comida honesta. Junte-se a nós!
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Imagens:
1. See Saw: Retro Kitchen Illustrations.
2. Arquivo pessoal, 2011.
Imagem destacada: arquivo pessoal, 2011.