Ela, a viajante solitária

Ela e o mar, o barco, o barqueiro. Desconhecidos todos uns dos outros. Era ressaca brava, nem o colete salva-vidas deveriam colocar evitando o risco de ficarem presos entre o barco e o mar caso tombassem. Chegara pela trilha, com chuva, a barraca enlameada. Não havia energia elétrica, os mosquitos não perdoavam. E picavam, picavam, picavam. Ela não queria estar ali. Os amigos de viagem; a meia-dúzia de gente na praia deserta lhe pareciam uma multidão no Guarujá. Ela não queria estar ali. Tomou o barco, pagou o barqueiro antecipado e disse “vou embora” sem destino certo, sem saber se mesmo os ônibus ainda estariam passando àquela hora. Ela só foi.

Florianópolis, arquivo pessoal de Mari Moscou

Entre ela, o barqueiro, o barco e o mar, havia a brisa. A brisa embraçava os cabelos, salgava a pele, terminava qualquer visão estética perfeccionista de capa de revista. A brisa era o oposto do padrão: liberdade.

Quando viajava sozinha ela era livre. Não tinha medo, dona de si. Almoçava se queria, quando queria; escolhia trilha, ônibus, barco, trem, o que fosse, era ela que escolhia e só. Comia bem, comia mal, ficava sem comer. Acordava cedo e tarde, tirava sonecas vespertinas. Conhecia quem queria – o vendedor de brincos e bijuterias, o músico de rua, as ciganas, faxineiras, prostitutas. Buscava a paisagem ideal: hoje não quero ir ao Louvre. Não quero, aliás, ir ao Louvre só para ir ao Louvre. O Louvre estará aí se eu decidir voltar um dia. Caguei pro Louvre. Era quase isso.

São Paulo, arquivo pessoal de Mari Moscou

De onde você vem, menina? Menina não que ela era mulher. Vinha de uma família de mulheres, livres todas, que viajam sozinhas. Reparava que “sozinha” tinha um sentido ruim quando lhe diziam incomodados: “ah, mas você vai sozinha?”, tadinha dela, sem companhia, a pobre!!! Mal sabiam tais desinformados que a solidão é uma liberdade sem fim; a locomoção é outra e quando agrupadas temos “viagem”. Viajava sozinha porque amava, viajava sozinha porque queria, mas acima de tudo viajava sozinha porque podia.

Esquecem-se quase sempre de que a liberdade é um direito. Direito garantido, nem sempre respeitado, mas sempre conquistado ao suor de muita luta. Feministas muçulmanas em todo o mundo lutam pelo direito de viajar sozinhas, sem seus maridos, pais ou homens responsáveis (que podem, pasmem, ser até seus filhos). Pelo direito à locomoção. À solidão. Liberdade.

Ela tomava o barco porque podia;

pegava o ônibus em seguida porque podia;

chegava numa cidade estranha porque podia;

Seul, arquivo pessoal de Mari Moscou

conversava nos bares, fazia amizades, aprendia. porque podia;

explorava paisagens e museus, roteiros, tempos, destinos, porque podia.

Como é que podia? Por que podia?

Podia porque, em solidão, não estava só. Ela ali no barco, ela só no ponto de ônibus não era ela só. Ela carregava outras. Séculos de mulheres atrás dela, estas que não puderam sempre desfrutar tal privilégio. Ela não era só ela. Ela era eu, era vocês, nós todas. Era a primeira, as seguintes e nunca a última feminista.