As casadas, as solteiras e “outras” diferenças entre as brasileiras no mundo do trabalho

Texto de Brunela Succi*.

Li na Folha de São Paulo, uma matéria do dia 17 de dezembro de 2011 entitulada: “Casadas ganham 20% mais que solteiras no Brasil”. O texto fala de uma pesquisa realizada pela economista Carolina Flores e orientada por Regina Madalozzo, com base nos datos produzidos pelo Censo do IBGE de 2000. Quero comentar sobre três elementos presentes no texto.

Em primeiro lugar, a comparação é feita entre a situação de casadas e solteiras no mercado de trabalho brasileiro com o dos Estados Unidos. Toda comparação, como tudo na vida, tem seus pontos positivos e serve para fazer emergir aspectos ocultos ou naturalizados do fenômeno que se analisa. Neste caso, é válido dizer que, em comparação com os EUA, as mulheres no Brasil ainda sofrem diversas dificuldades e encontram inúmeras barreiras para ingressar plenamente no mercado de trabalho, principalmente o especializado. É também interessante observar o porquê de nos EUA as solteiras ganharem 34% mais que as casadas:

“Nos EUA, a presença das mulheres em vagas que exigem maior qualificação, como em empresas, é mais expressiva que no Brasil. Nesse ambiente, ter mais tempo para o emprego e possibilidade de viajar, o que é mais fácil para as solteiras, são pontos valorizados”, diz Madalozzo.

No Brasil, essa situação é invertida, já que as casadas ganham em torno de 19% mais que as solteiras. Mas, aproveitando meu momento “latinoamericanista em invenção”, fiquei pensando que essa comparação do Brasil com os EUA, em se tratando de dois países com estruturas econômicas, modelos de desenvolvimento, política e sociedade tão distintos, tem certos limites. Principalmente, se por trás desse estudo existir algum tipo de pretensão ou objetivo prático. Imagino, por exemplo, o objetivo de tentar contribuir para a discussão das formas de acesso e ascensão das mulheres no mercado de trabalho. Me pergunto, se não teria sido mais válido e eficiente que a comparação entre a situação das casadas e solteiras em mercados de trabalho fosse entre dois países da América Latina. Duas economias emergentes, países cujas políticas econômicas estejam tentando se afinar com o desenvolvimento social e, portanto, onde a questão do acesso ao mercado de trabalho e tudo que pode estar relacionado a ela (como acesso à educação), também está posta na discussão do desenvolvimento econômico.

A juíza Luislinda Valois. Foto: Rejane Carneiro| AG. A TARDE

Da mesma forma, é ncessário pensar a realidade das mulheres no Brasil entendendo-a de maneira contextualizada e articulada, com elementos históricos, regionais e sociais. Inclusive pensando o próprio país em seu um contexto latinoamericano, que cresce e aumenta em importância. Penso que essa comparação teria dado muitos frutos e, contribuiria para não isolar a questão das mulheres brasileiras no próprio contexto brasileiro, em relação aos homens brasileiros também.

Segundo ponto. A pesquisadora afirma: “Mas creio que, à medida que o mercado brasileiro se desenvolva e as mulheres assumam mais postos qualificados, a situação no país se aproxime da dos EUA”. Além de um pouco ingênua, porque inverte causas e consequências, essa afirmação pressupõe a idéia de que a falta de oportunidades de acesso das brasileiras e, principalmente solteiras, ao mercado de trabalho pode ser entendida simplesmente como uma questão de desenvolvimento econômico. Em outras palavras, se o Brasil se desenvolvesse mais, seria natural que houvesse mais mulheres em postos de trabalho mais qualificados. Certo? Não, infelizmente isso não é tudo.

A questão do acesso das mulheres a trabalhos qualificados no Brasil não é só uma pergunta sobre maior ou menor desenvolvimento econômico e do mercado de trabalho, mas entre outras coisas, sobre desigualdades de gênero, classe, etnia e oportunidades. Perguntar pela presença de mulheres em postos de trabalho qualificado implica perguntar pela sua chegada e passagem pela qualificação, e mais importante, pela escola. É também uma pergunta sobre o papel atribuído às mulheres em nossa sociedade, as quais sabemos, ainda estão sendo educadas para, antes de mais nada, dedicar-se à família, filhos, maridos, namorados, aos outros. E, quando sobra tempo e dinheiro, ao espelho. E, por fim, pensar talvez uns minutos por dia sobre si mesma. Não digo que sou contra a família, filhos, marido e etc. Mas digo que em nossa sociedade isso tudo é posto como primeira obrigação e a única forma de realização plena da mulher, em oposição a outras incontáveis possibilidades, como: estudar, ter uma profissão, criar uma carreira, investir tempo e energia nela, ter sonhos e poder projetar-se como mulher também em outros aspectos da vida.

A educadora kaingang Gilda Kuitá, da Terra Indígena de Apucaraninha, localizada no município de Londrina, recebeu a medalha da Ordem Nacional do Mérito. A condecoração foi entregue em Brasília pela presidente Dilma Roussef. Foto: Antonio Cruz/ABr

Terceiro ponto e um dos mais complicados para mim. Ao afirmar que entre as mulheres casadas, as que ganham mais são as asiáticas seguidas pelas brancas, e as que ganham menos são as negras, pardas e indígenas, a pesquisadora completa dizendo que: “pode ser um reflexo da qualificação, mas esse grupo é pequeno; representa menos de 1% do total”… Pera lá! Quer dizer então que, entre as mulheres casadas que trabalham abrangidas pelo Censo ou pela pesquisa, as negras, pardas e indígenas representam apenas 1% do total? Ou que as qualificadas representam apenas 1% do total? Não parece estranho que no Brasil, onde a maioria da população é negra e mestiça e, onde as mulheres sejam, muitas vezes, as únicas responsáveis pela manutenção dos lares, apenas 1% das casadas que trabalham sejam negras, pardas e indígenas? Ou que apenas 1% das trabalhadoras – as indígenas, negras e pardas (as últimas inclusive representando a maioria das mulheres brasileiras) – seja minimamente qualificada?

Isso aponta para dois problemas: primeiro explicitar bem os critérios da coleta de dados na pesquisa e na matéria do jornal, já que não fica claro se os dados são referentes as  mulheres que trabalham, ou as mulheres qualificadas que trabalham. Isso passa batido pelo texto e denota um pouco de descaso na transmissão da notícia, já que a jornalista acaba oferecendo uma informação confusa. Caso seja um problema da coleta de dados da pesquisa, a pesquisadora sempre pode retrucar: “mas eu sou economista, não sou socióloga”. Não estou dizendo que tinha que ser, mas caso isto não esteja explicitado na pesquisa, fica difícil dizer que os seus resultados dizem respeito à realidade da totalidade das trabalhadoras brasileiras. O outro problema reside exatamente em que se forem corretos os dados, apenas 1% das mulheres casadas e com qualificação e trabalho sejam provenientes das parcelas mais numerosas da população: as negras e pardas. Se pensarmos em indígenas, uma minoría numérica não menos importante, aposto que a proporção dessas mulheres no mercado de trabalho em relação à população indígena é ainda menor do que se pensarmos essa mesma relação na população não-indígena. Como se vê, as indígenas aparecem mais invisibilizadas que as negras e pardas, já que sequer se considera que a condição de minoria numérica e étnica implica outros tipos de injustiças às, quais estão sujeitas no mundo do trabalho e no acesso a ele.

Ainda questionando essa mesma afirmação de que o fato de asiáticas e brancas ganharem mais que negras, pardas e indígenas “pode ser um reflexo da qualificação”, podemos encontrar outro problema: ela pressupõe que brancas e asiáticas estão melhor ou mais qualificadas que negras, pardas e indígenas. Acho factível, já que não é novidade que o Brasil é um país injusto e, que uma das maiores desigualdades se observa no comparativo entre as parcelas brancas e negras da população. No entanto, deixa-se transparecer que essa diferença se baseia na qualificação, e não em desigualdades anteriores, como a desigualdade de oportunidades.

Fiquei pensando depois nessas tantas outras informações importantes que se escondem por tras dos números desta pesquisa. Apesar de focalizar as diferenças econômicas entre mulheres casadas e solteiras, a pesquisa traz à tona outros elementos até mais determinantes do que o estado civil nas carreiras profissionais dessas mulheres e nas suas possibilidades reais de acesso ao mercado de trabalho. Embora a diferença entre elas pareça ser basicamente uma diferença de 19% na média salarial, as diferenças étnicas e sociais gritantes, que não só influenciam como impedem que pardas, negras e indígenas tenham acesso ao mercado de trabalho, aparecem como um número muito mais assustador. Afinal, como é possível que apenas 1% das mulheres casadas e que trabalham em postos minimamente qualificados no Brasil sejam provenientes da camada majoritária da população, ou seja, negras e pardas (e indígenas, apesar de serem minoria numérica)? Como diria minha sábia vovozinha: só olha quem quer ver!

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*Brunela Succi é Estudante universitária, professora, pesquisadora, artista nos sonhos e de brincadeira, amante de filosofia de buteco e padaria, por que não? Escreve no blog Como um lápis numa península.