Um Pañuelo Verde no Pescoço da Mãe Preta.

Texto de Camila Rech e Carolina De Marchi*.

São Paulo amanheceu com uma estranheza nova nesse 8 de março de 2021, Dia Internacional da Mulher. Uma mensagem verde a ser decifrada se enrolou junto ao pescoço do monumento à Mãe Preta, que criou os filhos alheios e, sobretudo, criou estratégias de sobrevivência. Mãe Preta, que antes de tudo, é mulher preta, a mulher que mais morre no Brasil. 

Figura presente no imaginário cultural como mito da harmonia inter-racial, símbolo da fidelidade e amabilidade para com a Casa Grande, a mãe-preta era a escravizada escolhida para ser de estimação, doméstica – e domesticada. Segundo grande parte da literatura modernista e saudosa do legado aristocrático-patriarcal do Brasil colônia, amamentava e criava os filhos da sinhá na maior prova de seu servilismo. Foi Lélia Gonzalez, intelectual pioneira do feminismo negro no Brasil, quem desidealizou a bondade incondicional da mãe-preta e apontou para a sua condição de simplesmente mãe, lugar de linguagem. Ao ensinar os filhos brancos e negros a caminhar, falar e contar histórias, assume seu papel fundamental de maternagem na formação da cultura brasileira.

E quando ela não quer ser mãe, o que acontece?

É provável que, para a maioria das pessoas, a intervenção urbana do lenço na Mãe Preta do Largo Paissandu (em frente à igreja) não tenha sugerido absolutamente nada. Já para outras, o tecido se refere a qualquer coisa difusa relacionada ao feminismo. E para um terceiro grupo, que o carrega amarrado nas mochilas, bolsas, pescoços e pulsos, é o signo para a troca de olhares de conforto, cumplicidade e confiança, mesmo no vai e vem atordoante das calçadas de grandes metrópoles. Há quem tenha visto, inclusive, uma troca de sorrisos entre aquelas que o usam. É que o lenço verde representa a luta pelo aborto legal seguro e gratuito.

Por que o lenço verde?

Tudo começa na década de 70 com os pañuelos blancos, tecidos triangulares que representam as fraldas de pano que haviam sido dos filhos presos e desaparecidos na ditadura militar argentina. Suas mães, organizadas para reivindicar do Estado aquelas vidas, passaram a se reunir e a marchar na Plaza de Mayo, em Buenos Aires. As fraldas de pano viraram lenços em suas cabeças, amarrados abaixo do queixo, bordados a ponto cruz com os nomes dos filhos e netos perdidos. Se em uma época longínqua de “damas” e “cavalheiros” o lenço era usado para cobrir o cabelo, enxugar lágrimas e suor, ou até mesmo flertar, o acessório reverteu, então, sua carga simbólica de fragilidade e passou a traduzir também um vigor político. Afirmava-se, em 1977, como um ícone potente em mobilizações de mulheres. Aliás, as Madres da Plaza de Mayo são um movimento que segue vivo e pulsante, protagonizando ou apoiando diferentes lutas ligadas aos direitos humanos. 

Em 2003, durante o XVIII Encuentro Nacional de Mujeres na Argentina, a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto distribuiu milhares de pañuelos verdes com os dizeres: “educação sexual para decidir, anticonceptivos para não abortar, aborto legal para não morrer”. Pronto. A partir daí, virou ícone de uma onda renovada do feminismo não só nas ruas da Argentina, como também no México, Peru, Chile, Brasil, entre outros. A chamada “Maré Verde”, presente em diversos países latinoamericanos, revela que sim, há uma rede do movimento no continente — e que segue se expandindo.

A origem da cor verde é difusa. Há quem diga que foi ao acaso: era para ser violeta, reconhecida historicamente como a cor do feminismo. Como não havia tecido suficiente para produzir em quantidade, as militantes argentinas teriam eleito o verde, por não estar conectada a nenhuma outra causa política. No entanto, há relatos de que a cor verde foi deliberadamente escolhida, porque está conectada à natureza e suas associações pagãs, ou seja, pré-católicas. Tradicionalmente, ainda, a cor verde remete à vida e à saúde. A disputa linguística teria se dado entre as organizações feministas e los antiderechos (ou os Provida), justamente por divergirem com respeito ao momento de início da vida humana. Sendo assim, a cor verde dos pañuelos foi eleita como bandeira do direito à vida das mulheres. Seja como for, hoje, costureiras e donos de estabelecimentos no Once, como é conhecido o distrito comercial onde ficam as lojas de tecidos na cidade de Buenos Aires, se referem ao verde do pañuelo como “verde aborto” – anteriormente conhecido como o bem menos politizado “verde Bennetton”.

O nosso pescoço

Ao que tudo indica, o pañuelo é símbolo que fala de filhos, de mães, de mulheres, mas sobretudo, de vidas, de direitos humanos. No Brasil, salvo três situações (em caso de estupro, risco de morte para a mãe ou se o feto for diagnosticado com anencefalia), o aborto ainda é crime tipificado em Lei.  De acordo com o Ministério da Saúde, a cada dois dias uma mulher morre em função de complicações do aborto realizado de maneira insalubre e desassistida por profissionais no país. Em sua grande maioria, são mulheres negras que moram nas periferias, uma vez que aquelas com melhores condições socioeconômicas (em sua maior parte mulheres brancas) possuem renda para acessar o mercado ilegal de medicamentos, assim como os estabelecimentos clandestinos, estratégias para interromper a gestação de forma relativamente mais segura. São as mulheres negras também as mais processadas por abortarem sem assistência. Ou seja, a mortalidade e a criminalização do aborto tem raça e classe.

No intento de ler essa intervenção urbana, a presença do pañuelo de cor verde no pescoço da Mãe Preta sugere proteção. Não se trata de ser a favor do aborto, e sim de ser contra a clandestinidade — responsável pela morte das mais vulneráveis. Afinal, o aborto existe e existirá com ou sem a despenalização. O argumento e defesa da legalização tem como foco a saúde e a vida das mulheres e outras pessoas com capacidade de gestar.

Por um futuro mais verde

Entre privilegiadas e desprivilegiadas brasileiras, segundo dados da Pesquisa Nacional do Aborto, desenvolvida pela Anis – Instituto de Bioética, uma a cada cinco mulheres de até 40 anos já interrompeu voluntariamente alguma gravidez. Ou seja, você provavelmente conhece algumas dessas mulheres, mas elas não podem falar abertamente sobre isso em função da situação de ilegalidade (e pecado) que o Estado brasileiro quase laico as coloca. (Sobre o neoconservadorismo e a relação mal resolvida entre Direito e Igreja, é recomendável ler “Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina”, de Flávia Biroli, Maria das Dores Campos Machado e Juan Marco Vaggione – Ed. Boitempo, 2020).

As vizinhas hermanas, desde dezembro de 2020, puderam romper o silêncio do evento aborto depois de, no mínimo, 20 anos de luta. Invadido e colonizado por outro país que não a Espanha, o Brasil sempre teve certa dificuldade linguageira-cultural de se enxergar como povo latino-americano. Mas talvez agora, diante desses tempos de velhas e novas estranhezas, governados pela violência clérico-patriarcal das milícias, possamos nós, brasileiras, reconhecer no pañuelo verde o olhar amigo e cúmplice das hermanas que conquistaram o que um dia vamos conquistar: descatolicização de úteros, compartilhamento de lutas, símbolos, cores e panos. A mãe do Brasil, ao que tudo indica, se juntou à luta.

Referências

Gonzalez, L. (1984). Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 223-244. 

Biroli, F.; Machado, M.D.C.; Vaggione, J. M. Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina. Boitempo, São Paulo: 2020

*Autoras

Camila Rech é psicóloga, mestre em Saúde Coletiva.

Carolina de Marchi é Jornalista, pesquisadora e pós-graduada em Gestão Cultural.