Deus lhe pague (Chico Buarque)
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer, e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pelo prazer de chorar e pelo “estamos aí”
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair
Deus lhe pague
Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague
MP 557, BBB, ocupação do Pinheirinho, cracolândia, a ocupação de uma universidade, estudantes que protestam nas ruas, um projeto de lei norteamericano sobre a internet. Pode ser que esses assuntos pareçam aleatórios e que entre eles não exista nenhuma conexão. Pode parecer também, para muitos, que aqueles que se engajam em tantos temas ou tantas causas diferentes, queiram apenas mais uma causa para chamar de sua. Pode ser. Mas não é.

Não é quando se percebe que, para aqueles que estão envolvidos e engajados nesses temas ou causas, há uma base ou preocupação comum: a defesa dos Direitos Humanos. E para nós, que nessa preocupação estamos incluídos, não há como regra a necessidade de uma escolha. Muito menos uma pauta hierarquizada ou predeterminada dos assuntos dignos de discussão. Menos ainda o balizamento do discurso social de um movimento a partir de um discurso social dominante.
Ocorre, no entanto, que a teoria e a prática dos direitos humanos nas últimas décadas do século XX foi capitaneada pela teoria de Bobbio*, segundo a qual esses direitos já estão construídos e garantidos e o cerne da preocupação deveria ser sua respectiva concretização. O problema, para ele, seria apenas político, não filosófico. A tese é legítima, mas limitadora. Uma teoria crítica dos direitos humanos, construída por autores como Joaquin Herrera Flores**, por outro lado, busca abandonar a pretensão da universalidade desses direitos e reconhecer sua condição de produto cultural. “Uma teoria de perspectiva crítica opera na busca de libertar o sujeito de sua condição histórica de um ser negado e de um ser excluído do mundo da vida com dignidade” e revelar, como também diz o autor, o grau de automação e alienação do homem, inclusive nesse campo.
O que mais chama atenção na tese de Joaquin é o argumento de que mesmo o debate sobre os direitos humanos está ainda condicionado à perspectiva europeia, ocidental e capitalista e, que a idéia de Bobbio talvez não esteja assim tão correta. Quando a formulação desses direitos teve e ainda tem bastante da reprodução dessa estrutura, como os querer universais? Como dizer que o debate deve sair do seu conteúdo para a sua efetivação? Por que não ambos?
E mais, ao estabelecer que mesmo os direitos humanos são construções culturais, como reação e luta histórica em busca de condições e aptidões para a garantia da dignidade humana, como é possível dizer que esse processo de construção já está concluído? Sua caracterização como produto cultural leva a necessidade de admitir que, como tais, também demandarão sempre mudança, crítica, reformulação e, certamente, efetivação, como sustentou Bobbio.
A idéia de universalização ou universalidade pode engessá-los e obstaculizar o debate. É isso que movimentos como o feminista buscam e precisam buscar: não só o debate sobre s estrutura social que produz e reproduz uma cultura machista, mas também o produto dessa estrutura. E nisso se inclui debater tanto o conteúdo quanto a concretização dos direitos humanos. “Cada formação cultural”, diz o autor, “constrói cultural e historicamente suas vias para a dignidade”. A universalidade da ideia de dignidade humana não se nega. Os direitos humanos, no entanto, não poderiam ser entendidos por universais, sob pena de se negar a possibilidade de reconhecer diferentes formas de criação de condições para alcançá-la (a dita dignidade).

Pretendê-los universais impede que a crítica vá para além de uma concepção dos direitos humanos como formas de garantir a vida dentro do marco teórico ocidental, europeu e capitalista. Impede que se construa uma teoria dos direitos humanos a partir de uma perspectiva que não seja a de uma sociedade construída sobre as bases da propriedade privada. Impede mesmo, é possível dizer, que se construa tal teoria a partir de uma perspectiva que não seja a de uma sociedade patriarcal.
Dizer que é necessário hoje apenas concretizar os direitos já escritos pode levar a consideração de que basta a presença da frase: “homens e mulheres são iguais perante a lei”; para que a igualdade se faça real. Quando, na realidade, a teoria, a prática, a luta e a crítica feminista e LGBT, para citar apenas dois exemplos, tem demonstrado que o debate precisa ser ampliado e que há ainda espaços sem proteção devida, como ocorre com os direitos sexuais e reprodutivos (ou ainda quando, diante de um possível estupro em um programa de TV, é possível ouvir algumas vozes considerando esse um tema fútil, quando o que se discute é o direito da própria mulher sobre o seu corpo e sua liberdade sexual).
Ou mesmo – e talvez especialmente – que direitos teoricamente garantidos, como a moradia, ainda são e serão insuficientemente garantidos (abstrata e concretamente) enquanto teoria e prática se assentarem sempre em uma matriz de pensamento que tem a propriedade privada como centro e critério. O debate tem que ser contínuo e sempre presente e, ao reconhecer os direitos humanos como produto cultural, permitir que a crítica possa, ao mesmo tempo, modificá-los em seu conteúdo e concretizá-los.
Os acontecimentos dos últimos meses e, em especial, o ocorrido ontem durante a irresponsável condução jurídica e política de Pinheirinho nos mostra que não só estamos longe de um sistema que se preste a efetivar os direitos humanos já garantidos, como também estamos distantes de uma formulação teórica desses direitos que se apresente suficiente e dissociada de uma matriz de pensamento dominante (mais uma vez): européia, ocidental, capitalista e patriarcal.
Por tudo isso, aqui, não escolhemos e nem podemos escolher indignações. Acreditamos no debate amplo e livre. Acreditamos e sabemos que o feminismo alheio ao racismo é cego, que o feminismo alheio à exclusão social é vazio. Defendemos Pinheirinhos, nos insurgimos contra a ação na cracolândia, discutimos BBB etc e tal, porque estamos inseridas nesse contexto de base que é comum: a defesa dos direitos humanos. (e nesse ponto peço licença para dizer que esse post foi desencadeado por tweets muito pertinentes da Amanditas e esse parágrafo é certamente uma paráfrase do que ela disse).
E se assim é, não podemos escolher indignações.
Deus lhe pague, mas “se eu não posso dançar, essa não é a minha revolução”.
* Norberto Bobbio, italiano, filósofo, no campo da política e do direito, escreveu inúmeras, dentre elas: “A Era dos Direitos”, em que trata da origem, fundamentos e construção dos direitos humanos.
** Joaquin Herrera Flores, espanhol, filósofo do direito, era Professor da Universidade Pablo de Olavide e escreveu obras como: A (re)invenção dos direitos humanos e Teoria crítica dos Direitos Humanos, era um crítico do humanismo abstrato.