Escrevi aqui, há pouco tempo, dois textos que se relacionam e que servem como introdução para o tema a respeito do qual quero tratar hoje.
Em “É preciso escolher” tratei das críticas sofridas pela militância feminista ao, segundo os críticos, tomar para si pautas demais e como essa crítica poderia ser afastada, a partir da visão de que a pauta dos movimentos sociais tem por base a defesa dos direitos humanos. Comentava que a interpretação, ou o conceito de direitos humanos, precisa ser reavaliado a partir de uma teoria crítica, que os reconheça como categorias ainda em disputa e construção.
Em “Direito e Gênero – entre a teoria e a realidade‘” foi comentado como a previsão constitucional da igualdade não é suficiente a garanti-la na prática. Volto a utilizar esses argumentos para colocar em debate o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, que discute a constitucionalidade do sistema de cotas raciais. A ação foi proposta em 2009 pelo Partido Democratas (DEM) contra o sistema de cotas raciais instituído pela Universidade de Brasília (UnB). Antes de falar do julgamento que iniciou na tarde do dia 25 de abril, complemento e retomo os pontos lançados naqueles textos.
Direitos Humanos em perspectiva crítica
A teoria tradicional dos Direitos Humanos se assenta em uma ideia estática desses, ao considerar que sua previsão em um diploma legal é suficiente para garantir sua existência e, assim sendo, sua titularidade por todos, independente de qualquer discriminação. Ocorre, no entanto, que ao contrário do que a teoria tradicional sempre fez parecer, o direito não cria nada e não garante nada por si só, em especial em matéria de direitos pertencentes a todos os seres humanos. Na verdade, nessa matéria, os direitos são um meio, um processo de garantir a todos os bens da vida fundamentais a assegurar a dignidade humana. Abandonar aquela concepção estática é fundamental para reconhecer que os Direitos Humanos são, na realidade, processos de luta pela dignidade humana: uma ideia dinâmica, que os reconhece como um meio e um processo.
Essa forma de pensar é fundamental para se perceber que o resultado desse processo de luta é sempre provisório e, por isso mesmo, deve ser atividade constante e continuada, que não se resolve com a previsão em texto constitucional (ainda que seja esse, obviamente, um passo importantíssimo). Como convenções culturais que são (os direitos humanos), colocá-los em uma perspectiva crítica permite reforçar a necessidade de ir além e reforçar as garantias formais presentes no texto constitucional,através de ações e práticas direcionadas a garanti-las também e principalmente no plano material.
Uma norma nos diz iguais, mas a realidade mostra que assim nem sempre é e o “resultado” é (ou pode ser) diferente para uns e outros, a depender da posição (considerando as divisões sociais, sexuais, raciais, étnicas, e territoriais do fazer humano) que um sujeito ocupe na luta pelos bens da vida. *
O debate hoje gira, então, em torno de um dos mais discutidos, mais perseguidos e (arriscaria dizer) menos garantidos dos direitos humanos: a igualdade.
ADPF 186 – cotas raciais

Na sessão de hoje, manifestou-se em primeiro lugar a advogada do DEM (requerente na ação) Roberta Kaufmann. Afirmou que o sistema de cotas cria um Brasil racializado e criticou a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), classificando-a como “Secretaria do Racismo Institucionalizado”.
Na sequência, a sustentação oral foi realizada por Indira Ernesto Silva Quaresma, representando o Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão da UnB (CEPE), o reitor da UnB e o Centro de Seleção e de Promoção de Eventos da Universidade de Brasília (Cespe). A fala teve algumas passagens brilhantes. Comentou, contrariamente aqueles que dizem inexistente racismo no país que o “racismo no Brasil, só nós, negros, podemos senti-lo”. Disse, ainda ,que “a ideia de uma sociedade que não se importa com cores” , como muitos querem dizer ser o caso do Brasil, “é normalmente defendida por pessoas de pele mais clara”. Contra a ideia de que racismo não existe aqui, sustentou que “os olhares brasileiros identificam os negros em qualquer ambiente”.
Foram ouvidos, logo depois, os Amici Curiae**. Contrários às cotas falaram a representante do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro (MPMB), Juliana Corrêa e a advogada do Movimento contra o Desvirtuamento do Espírito da Política de Ações Afirmativas nas Universidades Federais e do Instituto de Direito Público e Defesa Comunitária Popular (IDEP), Wanda Siqueira.
Pela improcedência da ADPF 186, favoráveis às cotas, falaram o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante; o defensor público geral federal, Haman Córdova, pela Defensoria Pública da União (DPU); o advogado Hédio Silva Júnior, pela Associação Direitos Humanos em Rede – Conectas Direitos Humanos; o advogado Humberto Santos Júnior, pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA); a advogada Silvia Cerqueira, do Movimento Negro Unificado (MNU); o advogado Thiago Bottino, pelo Educafro – Educação e Cidadania de Afro-Descendentes e Carentes; e o advogado Márcio Thomaz Bastos, que representou a Associação Nacional dos Advogados Afrodescendentes (ANAAD).
Muito esperada era a manifestação da Procuradoria Geral da República, por Deborah Duprat.
Deborah desconstruiu a ideia de uma miscigenação natural no país, realizada por encontros amorosos entre brancos e negros. Lembrou que, na verdade, tratou-se de política de estado de ocupação e aumento populacional:
Ela decorre de uma engenharia social do período colonial escravocrata como estratégia de povoamento e de força de trabalho escravo.
Conforme ressaltou a Subprocuradora Geral, ações afirmativas em relação a grupos minoritários não são novidades em nossa Constituição, como é o caso das relativas às mulheres e aos deficientes. Indagou, então, porque as ações, quando referentes ao recorte racial, causam “tanto desassossego”. Questionou, muito apropriadamente, por que questões como “Por que não só mulheres e deficientes pobres?” somente são invocadas quando se está a discutir cotas raciais. Afinal, a finalidade das cotas, ressaltou, é promover a diversidade nas universidades, ao contrário de pretender resolver um problema social.
O voto do relator e a constitucionalidade de ações afirmativas
O julgamento teve início, após as referidas manifestações, com o voto do relator, Ministro Ricardo Lewandowski, que iniciou comentando a diferença entre os conceitos de igualdade formal e igualdade material, na linha do que se comentou no início deste texto, da insuficiência da previsão constitucional. Citando Daniela Ikawa, comentou que:
“O princípio formal de igualdade, aplicado com exclusividade, acarreta injustiças (…) ao desconsiderar diferenças em identidade.
(…)
Apenas o princípio da igualdade material, prescrito como critério distributivo, percebe tanto aquela igualdade inicial, quanto essa diferença em identidade e contexto. Para respeitar a igualdade inicial em dignidade e a diferença, não basta, portanto, um princípio de igualdade formal.

Assim como o ressaltado por Deborah Duprat, Lewandowski lembrou que ações afirmativas não são estranhas ao sistema constitucional nem mesmo ao Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu a constitucionalidade de ações semelhantes em outros momentos.
A partir de um estudo histórico bastante interessante, demonstrou que, ao contrário do que se costuma dizer e pensar, essas políticas tem origem na Índia e não nos EUA. E naquele país marcado por fortíssima estratificação social, elas permitiram que pessoas pertencentes a castas inferiores ascendessem a posições de destaque e poder.
Um dos pontos que me pareceu merecedor de destaque do voto do Relator é aquele referente aos critérios para ingresso no ensino superior. Cito a passagem:
A Constituição Federal preceitua, em seu art. 206, I, III e IV, que o acesso ao ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: “igualdade de condições para acesso e permanência na escola”; “pluralismo de ideias”; e “gestão democrática do ensino público”. Registro, por outro lado, que a Carta Magna, em seu art. 208, V, consigna que o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística será efetivado “segundo a capacidade de cada um”.
Tais dispositivos, bem interpretados, mostram que o constituinte buscou temperar o rigor da aferição do mérito dos candidatos que pretendem acesso à universidade com o princípio da igualdade material que permeia todo o Texto Magno.
O argumento é bastante relevante, especialmente quando se percebe que um dos principais fundamentos dos contrários às cotas está na meritocracia como base do sistema de ensino superior. A interpretação do Ministro coloca luz na questão: a meritocracia não pode ser tomada de modo absoluto e deve ser mitigada ou orientada pela igualdade material; trabalho feito pela criação de políticas de ação afirmativa.
A consideração mais importante, porém, do voto, parece-me mesmo a análise do uso da ideia ou do termo “raça”. Citando novamente Daniela Ikawa, comenta que o uso é justificável em políticas afirmativas uma vez que ele é o instrumento usado para construir“hierarquias morais convencionais não condizentes com o conceito de ser humano dotado de valor intrínseco ou com o princípio de igualdade de respeito (…). Se a raça foi utilizada para construir hierarquias, deverá também ser utilizada para desconstruí-las”.
Essa desconstrução é um processo de 3 fases:
“i. a construção histórica de hierarquias convencionais que inferiorizaram o indivíduo quanto ao status econômico e de reconhecimento pela mera pertença a determinada raça (…); ii. a reestruturação dessas hierarquias com base em políticas afirmativas que considerem a raça, voltando-se agora à consolidação do princípio de dignidade; iii. A descaracterização do critério raça como critério de inferiorização e o estabelecimento de políticas universalistas materiais apenas”
Há um evidente papel simbólico nas ações afirmativas, que mudam a cor e a visão de mundo no âmbito universitário (Márcio Thomaz Bastos, no início da sessão, citava como as cotas mudaram a cor dos convites de formatura e eu confesso que gostei muito dessa referência, lembrando do meu próprio convite da Universidade Federal do Espírito Santo). Beneficiado não é o aluno que ingressa pela cota, mas todo o sistema universitário, que, como diz o Ministro, terá a oportunidade de conviver com o outro.
Para concluir esse relatório do primeiro dia de julgamento, uso as palavras do relator:
É preciso, portanto, construir um espaço público aberto à inclusão do outro, do outsider social. Um espaço que contemple a alteridade. E a universidade é o espaço ideal para a desmistificação dos preconceitos sociais com relação ao outro e, por conseguinte, para a construção de uma consciência coletiva plural e culturalmente heterogênea, aliás, consentânea com o mundo gobalizado em que vivemos.
Uma conclusão
O feminismo, às vezes, é acusado de ser um movimento que defende uma pauta única. Somos, outras vezes, acusadas de tentar defender pautas demais. Prefiro a última acusação e fico até feliz quando ouço dizerem que levantamos bandeiras demais. Ora, essas tais “pautas demais” fazem parte de uma mesma e única causa: ser feminista, parece-me significar, antes de tudo, acreditar na defesa dos direitos humanos.
Não posso falar em nome das negras e negros. Nem posso falar em nome das feministas ou em nome do movimento feminista. Sei que falo de um lugar privilegiado, ainda que reconheça que, como mulher, faço parte de um grupo alijado em direitos. Sei que branca pertenço a uma categoria privilegiada. Essa posição, contudo, não me impede de reconhecer a necessidade da luta por igualdade e a estrutura social construída sobre bases que reproduzem e naturalizam a discriminação racial. Um racismo institucionalizado, naturalizado, tornado invisível e que, assim, perversamente se reproduz protegido pelo mito do país plural e miscigenado.
Seria fácil, daqui do alto do meu privilégio, dizer que ações afirmativas como essa permitem uma facilitação para o ingresso nas universidades de quem deveria se esforçar, como todos os demais. Considero, no entanto, que um pensamento como esse só é possível para os que desconsideram que, sendo brancos, tiveram e tem uma vantagem no ponto de partida. Como bem destacou Deborah Duprat, o padrão dominante “homem branco heterossexual” saiu na frente na corrida. Como então chamar isso de simples mérito?
Coloco aqui, então, umas poucas impressões pessoais, ao lado de um pequeno relatório sobre o julgamento da tarde de ontem e isso é o máximo que me permito fazer até o momento. Colocar o assunto em debate e esperar que o julgamento seja concluído para reconhecer a validade das cotas raciais.
*As considerações a respeito dos direitos humanos tem por base os livros Teoria crítica dos Direitos Humanos e A (re)invenção dos direitos humanos, ambos de Joaquín Herrera Flores.
**Para compreender o que é o amicus curiae, leia o texto de Damares Medina: Reequilibrando o jogo – “Amicus curiae” no Supremo Tribunal Federal
Alguns links sobre o assunto:
- STF julga cotas raciais e define sentido da igualdade, por Marcelo Semer no Terra.
- Cotas étnicas e igualdade, por Pedro Estevam Serrano na Carta Capital.
- A função racial da universidade, por Bruno Cava no Le Monde Diplomatique Brasil.
- Ação afirmativa de bons resultados e mais, por Wania Sant’Anna no Geledés.
- Nosso racismo é um crime perfeito, entrevista com o O antropólogo Kabengele Munanga na Revista Fórum.
- Nota pública sobre o sistema de cotas, pelo Centro Acadêmico de Direito da UnB.
- Os 10 mitos sobre as cotas – Inclusão Social/UFMG.