Reforma do Código Penal: o aborto, de novo.

“Quero deixar claro de entrada que não entendo de leis e que guardo, como mulher, certa desconfiança a priori para com  justiça que estas leis me deveriam garantir. Não sei imaginar uma sociedade sem leis e, no entanto, não consigo realizar essa operação de redução da vida, de redução das histórias pessoais, que é necessária para pensar uma lei. Penso que minhas razões de mulher são intraduzíveis em uma ótica que quer melhorar as leis, mas reconheço as leis como um de tantos lugares possíveis de luta para as mulheres. Considero humilhante pedir ser reconhecida como pessoa, no entanto, penso que é necessário; mesmo quando obtido esse reconhecimento, minha vida não mudará muito em um mundo que não coloca em discussão o conjunto de seus critérios de valor”.

Alessandra Bochetti[1]

 

Um professor argentino contou certa vez uma história a respeito das reuniões da Comissão para a reforma do Código Penal Argentino da qual participava. Ao consultar o hoje Ministro da Suprema Corte argentina e conhecido penalista, Eugênio Raul Zaffaroni, este recomendou: se quiserem mesmo que esse projeto seja aprovado, mexam em tudo, mas não mexam no aborto.

De se dizer que Zaffaroni é conhecidamente favorável à descriminalização do aborto, mas que, naquele momento, entendia que a modificação provocaria tanta comoção social que o novo Código, tão esperado, não seria aprovado. A “profecia”, segundo conta o professor, se verificou e o projeto não foi aprovado.

No dia 18 de junho, a Comissão de juristas que discute a proposta de um novo Código Penal brasileiro chegou à sua reunião final e apresentou seu anteprojeto. São vários os temas e modificações, mas dentre elas, certamente, o tema do aborto chama atenção:

Pela proposta, uma gestante de até 12 semanas poderá interromper a gravidez desde que um médico ou um psicólogo ateste que a mulher não tem condições de arcar com a maternidade. Atualmente, a prática é crime, exceto nas hipóteses em que a gravidez acarreta risco para a vida da mãe ou é resultado de estupro. (…) No caso do aborto, são sugeridas a diminuição das penas e o aumento nas hipóteses de descriminalização. A principal inovação é que a gestante de até 12 semanas poderá interromper a gravidez desde que um médico ou psicólogo ateste que a mulher não tem condições de arcar com a maternidade.

Quais as chances de tal modificação vir a ser aprovada? Não posso apostar. Mas, diante da possibilidade de repetição da profecia argentina em terras brasileiras, o tema deve ser tratado à exaustão, esclarecido, comentado e politizado. Na tentativa de que assim tenhamos, ao menos, um debate aberto e dissociado de julgamentos morais e obscurantismos. Antes, no entanto, de falar do aborto, são necessárias algumas considerações.

1. Igualdade, Feminismo e as Overlapping opressions

A pauta central do feminismo é, de modo corrente, a discussão de gênero, a luta e a reivindicação de direitos iguais para mulheres e homens e a desconstrução de padrões de opressão baseados nas definições de gênero. Isso implica um mundo de temas: da  violência doméstica à inserção no mercado de trabalho, da repressão sexual à garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, da imagem da mulher na mídia ao trabalho doméstico, etc.

Ocorre, no entanto, que ao se analisar gênero e, principalmente, ao se colocar o feminismo como forma de discussão de garantias dos direitos humanos das mulheres, a discussão precisa ir além. O debate precisa incluir outros recortes ou formas de opressão, uma vez que a opressão do gênero nem sempre  (ou quase nunca) opera sozinha.

É o que se pode denominar Ovelapping opressions: “o conjunto de opressões superpostas que sofrem as minorias e grupos inferiorizados pelo sistema hegemônico global. Daí falar de gênero, supõe também falar de diferenças de classes, etnia, ração ou orientação sexual”.[2]  Assim, o critério de análise não pode ser somente o gênero e as consequências que ele, como forma de opressão, possa gerar. Deve-se estar atento para a interseccionalidade ou overlapping dessas opressões. E, nesse tema, essa forma de pensar é fundamental.

2. Crime e seletividade

A categoria “crime” parece ser  ou ter se tornado no discurso corrente, em dados momentos, uma ferramenta do pensar. Em outros, parece até uma ferramenta extraída de um dado natural. Como se a solução criminal fosse sempre uma boa opção para os conflitos e questões sociais ou como se o crime fosse um dado natural e não uma construção humana, histórica e culturalmente condicionada.

Não há nada de natural na categoria “crime”. Assim como não há nos demais institutos jurídicos. O crime é uma construção cultural e social. Conduta que pode ser praticada por qualquer pessoa, sem que haja uma linha que divida criminosos e cidadãos.

A decisão a respeito da criminalização de uma conduta não é nenhuma inspiração divina, nem  constatação a partir da observação da natureza, ou advinda de qualquer razão metafísica. É uma decisão política e que, portanto, muda no tempo e espaço, nas diferentes sociedades, em diferentes períodos e pode ser objeto de diversas construções teóricas. Uma conduta não é em si um crime. O que ocorre é que por decisão político-criminal opta-se por categorizá-la como tal, observando as tantas condicionantes da atividade político-legislativa como sociedade, cultura e segurança.

Nesse contexto, qual a função do Direito Penal? Resumidamente, o Direito Penal não serve para punir. O Direito Penal servepara proteger o cidadão do Estado e de eventuais arbitrariedades deste. Ou seja, ele não é uma garantia de um cidadão contra outro cidadão, mas uma garantia de todo cidadão contra o Estado. Porque, se o Estado tem o poder punitivo, como decorrência do fato de que o poder punitivo é parte do PODER, como controlar o Estado? Como garantir que ele não seja autoritário?  (se é que ele tem alguma função e aqui opto por uma delas, como forma de argumentar) 

Nossa herança escravagista, paternalista, machista e elitista transformou o sistema penal e seus presídios em depósito de gente excluída. ESSA é a nossa política pública. ESSA é a nossa infeliz política criminal. Essa é a forma de atuação das agências de controle formal (Poder Legislativo, Polícias, Poder Judiciário, Ministério Público) ou informal (veículos de mídia): a seleção e exclusão de determinados grupos ou pessoas, em especial daquelas mais vulneráveis à ação dessas agências.

TODO sistema penal é seletivo. E a ideia da seletividade reconhecida na criminologia, antes de qualquer coisa, nos lembra que: TODOS praticamos crimes, em um nível ou outro. Porém, APENAS alguns indivíduos são criminalizados, porque os olhos do sistema os veem de forma diferente dos demais.

Pensar que “bandido é bandido porque quer”  é uma cegueira social enorme. Repetir esse discurso, dizendo que mulher que aborta o faz porque é irresponsável, insensível ou um monstro, é igualmente equivocado. Especialmente quando se verifica que os dados levantados mostram que a ocorrência de abortos não escolhe classe social, religiosidade, idade ou raça. Porém, a punição e a seleção do aborto realizado, essas sim, escolhem.

Foto de Ale Muñoz no facebook

3. Aborto e seletividade

Dito que o Direito Penal é seletivo. Dito que sua principal “clientela” está em grupos socialmente mais vulneráveis à ação das agências formais e informais de controle social: negras, negros e pobres. Fica elucidado que não são estes que mais praticam crimes. Mas, que as condutas praticadas por esses recebem mais comumente o foco e a atenção das agências de controle. E, são constantemente objeto de criminalização, seja na criação de leis, seja na existência de processos judiciais pelas condutas praticadas. Em que isso se relaciona com o feminismo ou com a pauta do aborto? Uma rápida análise das recentes notícias sobre o tema nos dá o caminho:

a. Uma pesquisa realizada por Débora Diniz, na UnB, mostra que mulheres negras e pobres são as que mais sofrem com abortos arriscados. Afinal, para mulheres brancas e de classe média ou alta, os abortos são realizados por médicos “de confianca” ou “da família”, longe dos riscos de hospitais públicos e longe da possibilidade de que uma notícia crime seja feita e seja ela submetida a um processo criminal pelo aborto realizado.

b. Artigo de Rebeca Rebeca de Souza e Silva, do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp, comentado nessa mesma notícia, “confirma a tese de que a desigualdade social afeta o acesso à prevenção da gravidez e também a qualidade do aborto. De acordo com seu estudo comparativo entre mulheres casadas e solteiras residentes na cidade de São Paulo, “as solteiras recorrem proporcionalmente mais ao aborto provocado (…). Contudo, as mais pobres, com menor escolaridade e maior dificuldade de acesso às benesses do mundo moderno, continuarão pagando alto preço – que pode ser a própria vida – pela opção de provocar um aborto”.

c. A mulher que aborta, texto do Blogueiras Feministas e a Reportagem de Mariana Sanches, publicada no site da Revista Marie Claire, contam a historia de Keila Rodrigues, 37 anos, moradora de rua e dependente química, ela se descobriu grávida do terceiro filho. Mariana, de modo categórico afirma: A história de Keila é uma síntese do modo hipócrita como o aborto é tratado no Brasil. É proibido, acontece ilegalmente em todas as classes sociais, mas só os mais pobres costumam ser punidos e normalmente não encontram amparo nem mesmo onde deveriam receber cuidados,como um hospital público.

d.  Mulheres que procuram o sistema de saúde após a realização de um autoaborto são tratadas de forma inadequada e tem seus direitos humanos desrespeitados. Pesquisa realizada por Estela Aquino, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA) mostra que o atendimento dessas mulheres é, muitas vezes, permeado por julgamentos morais por parte dos atendentes — médicos (as) e enfermeiros(as) — que não dão a orientação necessária ou sequer aplicam os procedimentos recomendados ao caso. Além disso, contrariam a ética médica do sigilo da profissão e denunciam essas mulheres. Mais uma vez, diga-se: essa ocorrência atinge, em maior número, mulheres que não tem acesso a atendimento médico particular.

e. O Conselho Federal de Psicologia posicionou-se de modo favorável à descriminalização do aborto considerando em seus argumentos que o número de abortos de risco e/ou clandestinos tem aumentado no mundo, ainda que a prática seja criminalizada. Ademais, apresenta dados de estudo que mostra que “em todo o mundo, os abortos inseguros foram a causa de 220 mortes por 100 mil procedimentos em 2008 – 35 vezes mais do que a taxa de abortos legais nos Estados Unidos – e de quase uma em cada sete do total de mortes maternas”.  A nota diz ainda que “a lei atual impede que estas mulheres tenham direito a sua cidadania e aos seus direitos humanos sexuais e reprodutivos, direitos estes estabelecidos por importantes Conferências Internacionais de Direitos Humanos que produziram Documentos dos quais o Brasil é signatário.”

Percebe-se que a criminalização do aborto segue a lógica excludente e seletiva do Direito Penal. São as mulheres pobres e negras as mais vulneráveis e que, se não são diretamente denunciadas ou incriminadas, correm riscos  ao realizar abortos clandestinos. Afinal, os dados mostram que mulheres brancas e de classe média ou alta também realizam abortos, mas que, nessa escala de  seletividade, são menos vulneráveis à incidência do sistema penal. E, ao realizarem abortos seguros em clínicas particulares, permanecem distantes do radar da criminalização.

A hipocrisia no tema é clara. A manutenção do tema no âmbito penal e não como questão de saúde pública só faz perpetuar a exclusão daquelas mulheres pertencentes à tradicional “clientela” do sistema penal.

Por tudo isso, o aborto e sua descriminalização TEM que ser pauta constante do feminismo. Primeiro, pela razão mais direta de se tratar da garantia dos direitos reprodutivos das mulheres. Mas também (e especialmente aqui nesse texto), porque ao associarmos na análise diferentes formas de opressão — gênero e raça, gênero e classe social, gênero raça e classe social — percebe-se como os resultados da criminalização atingem de modo diferente àquelas mulheres inseridas em mais de um desses contextos  sociais de opressão.

 


[1] FLORES, Joaquin Herrera, La Construccion de las Garantias: Hacia uma concepccion antipatriarcal de la Libertad e la Igualdad.

[2] Idem, Ibidem.