Reconhecer os privilégios

Quando conheci o feminismo, entendi que os homens têm privilégios na sociedade e enchia minha boca e meu facebook de frases que sugeriam que os homens os reconhecessem e a importância disso para a luta contra o machismo. Aprofundando-me nas reflexões, compreendi melhor algo que já me incomodava desde a infância: eu também tenho privilégios. Sentia um grande incomodo e não compreendia bem aquele sentimento que beirava a culpa.

“Mulheres negras não são carne”. Marcha das Vadias de São Paulo/2012. Foto de Isabela Casalotti.

Estudei em escola pública, onde havia muit@s negr@s. Estudei também em escola particular, na minha turma só havia branc@s. Na universidade, a maioria d@s negr@s eram bolsistas. Hoje, trabalhando com a população em situação de rua, me deparo com mais uma discrepância: a maioria é negra. Agora, me atentando a isso, percebo que o racismo se reproduz também nos movimentos sociais. Como a Mari Moscou coloca muito bem em seu texto “Mulheres” são brancas; “Mulheres negras” são negras“quando não se diz a cor, a etnia, a raça, ela é branca, ocidental, europeizada”. E isso não pode ser “normal”, “natural”, “assim mesmo”…

Mais do que reconhecer o racismo da sociedade, hoje compreendo que é fundamental que eu saiba que minhas conquistas foram fruto muito mais do meu privilégio branco-classe-média do que do meu esforço, como um dia me disseram. Dessa forma, é minha obrigação a autovigilância constante para não reproduzir o racismo, inclusive no meu feminismo, porque as reivindicações das mulheres negras são impreterivelmente feministas.

Tenho aprendido muito com o Blogueiras Feministas. Um dos assuntos que tem me chamado a atenção é o cissexismo, que a Jarid Arraes explica muito bem no texto Cissexismo e o Feminismo. Há pouco tempo, esse tipo de reflexão nem passava pelas minhas discussões. Foi essencial que eu conhecesse melhor a questão trans* para reconhecê-la como pauta do feminismo. Afinal, também estamos discutindo papéis sociais de gênero.

Mais uma vez, senti um grande incômodo e percebi mais um privilégio. Porém, o desconforto foi ainda maior. Primeiro porque me pareceu muito óbvio que o preconceito contra pessoas trans* é enorme, mas nunca havia pensado no assunto. Segundo, porque vi pessoas se negando a reconhecer isso. Pessoas que como eu, apontam a necessidade dos homens perceberem seus privilégios. Muito me espantou ver feministas dizendo que há exagero nos apontamentos das pessoas trans* quando muitas vezes já foram acusadas de ver machismo em tudo.

Imagem compartilhada na página do facebook das Feministas do Cariri.

Pode até parecer simples, ou mesmo evidente para algumas pessoas, mas percebo que não é tão fácil reconhecer privilégios. O mal estar é grande e a mudança gera desconforto. No meu caso, foi aquele sentimento estranho que mencionei, beirando a culpa. No entanto, isso não é pretexto para não debater e não se informar. Só assim paramos de naturalizar as coisas e reconhecemos, de fato, as desigualdades e as opressões.

Ninguém disse que seria simples. Ser feminista não é apenas perceber problemas, é responsabilizar-se por eles. É questionar o estrutural, o cristalizado e a própria formação. Isso não é mérito algum, não é ser legal ou mais feminista. É a minha obrigação.

Machismo, racismo, homofobia, cissexismo, preconceito de classe… O problema não é vê-los em tudo. O problema é não ver.