Saudações feministas!
Esta carta não é uma recriminação, tampouco um empurrão contra o muro. É mais para que a gente se entenda, sabe como é. Eu sou feminista, vocês se classificam como neofeministas, então suponho que tenhamos coisas em comum, não?
Primeiro de tudo: o que é esse tal de neofeminismo? Uma das representantes de vocês diz que é um feminismo baseado em uma nova forma de protesto, como é isso exatamente?
Porque olha, é de fato uma particularidade de vocês o protesto sem roupa, mas novo ele não é. Não vivemos sequer uma daquelas épocas em que não se vê gente pelada pela frente (eu penso sempre no Luis Fernando Verissimo, em uma das suas crônicas, dizendo algo como “a molecada que hoje tem mulher nua em profusão não sabe como a gente sofria pra ver um pedaço de coxa no cinema” – claro, ele foi rapazote lá na metade dos anos 1950, mas sabemos que ele tem lá sua parcela de razão quando ressalta que eram outros tempos). Não vamos longe demais no tempo, as Marchas das Vadias ocorreram pelo país todo e contaram com participantes de topless. Então, sigo buscando a novidade que vocês apregoam, tentando entender de onde exatamente ela vem.
“Veja, estamos na mídia, somos notícia”. Ótimo. Esse é um dos pontos espinhosos na conversa. Eu não sei como parece a vocês, como é a avaliação que vocês fazem da repercussão das suas aparições (em grupo ou de representantes isoladas, caso da Sara no programa da Marília Gabriela) e, do que pode ter ficado da mensagem que vocês dizem procurar passar. Mas, sinceramente, eu desconfiaria.
Porque em primeiro lugar, sabemos que nem tudo que sai da nossa boca, das nossas mãos e nem tudo o que sobra das nossas ações repercute da mesma forma e em consonância com nossas intenções. E, isso aposto que vocês já perceberam, inclusive depois da divulgação de notícias sobre Sara Winter. Você fala ou faz uma coisa e quando vê, ela aparece do avesso (como vocês podem ver estou aqui considerando a versão oficial divulgada, de que um suposto envolvimento de uma das integrantes da Femen Brazil com nazistas e fascistas é passado. Também não vou discutir aqui o conceito de passado ou presente ou as percepções individuais de passagem do tempo).
Então, fico pensando até que ponto a visão sobre vocês é séria ou é baseada em um olhar de exotismo, de um “feminismo folclórico” ou pitoresco. Sobre o moralismo nem preciso comentar, é a primeira manifestação frente a algo tão simples como um corpo nu (e eu lamento bastante que isso ocorra porque o direito ao uso do próprio corpo deveria ser encarado como básico, fundamental, inalienável).
Mas, voltando, o que sobrevive para além desse aparente interesse pelo que é novo e exótico? Meninas de topless e coroas de flores protestando no vão do MASP em São Paulo? Parte da cobertura da imprensa sobre as manifestações de vocês e a inclusão de novas manifestantes no grupo assemelhou cada uma das mulheres a uma candidata a concurso de beleza, sob o pretexto de traçar um “perfil”. E foi isso, basicamente isso. Há que se ter cuidado, estar em evidência não é, necessariamente, associar consistência à imagem ou ser levad@ a sério.
O que estou querendo saber, na verdade, é o que vocês pretendem oferecer além dos protestos em grupo ou individuais? Falo de propostas mesmo, sabem como é? Quais as bandeiras do grupo? Como o grupo se organiza? Como pretende lutar? Como pretende agregar pessoas e como elas devem participar?

Fiz visitas à página da Femen Brazil e da Sara Winter no Facebook e vi que há pessoas interessadas em fazer parte da Femen Brazil, mas o que elas vão encontrar aí? Se eu resolver mandar uma foto minha com os seios pintados, vou ter a mesma acolhida que teriam candidatas com, digamos, 15 anos a menos que eu? Não pergunto para apontar dedo não, mas é porque me espantei um pouco com essa ideia de “processo seletivo”.
Vocês se apresentam como um grupo que não tem líder, mas vejam só, a pessoa que é no momento o rosto mais conhecido da Femen Brazil deu aquela entrevista à Marília Gabriela em que diz: “Eu estou atualmente com uma equipe de umas XX pessoas…”.
Então, é uma contradição que não me cai bem, porque integro um grupo (as Blogueiras Feministas) de estrutura horizontalizada, onde as decisões são tomadas de forma coletiva, em que há deliberação. Para mim, basta a hierarquia que sou obrigada a seguir em função do trabalho. Também estranho muito que a hiperexposição da mesma pessoa que é apontada como “representante” não dê espaço para outras pessoas — então não conhecemos qualquer outra face do grupo.
Na verdade, meu incômodo principal é resumido da seguinte forma: não sei qualquer coisa sobre a Femen Brazil. Não me chamem de desinformada, não me mandem ler. Eu já li, na verdade, sobre a “matriz” ucraniana, mas não encontrei material consistente disponível sobre a luta de vocês e seus projetos.
O que tenho é um conjunto de declarações um pouco desencontradas e muito vagas em uma série de veículos da mídia. Sei um pouco sobre alguns movimentos de mulheres atuantes no Brasil, como a Marcha Mundial das Mulheres, as Católicas Pelo Direito de Decidir, a Articulação de Mulheres Brasileiras, o SOS Corpo, entre outros. Sobretudo, porque há um diálogo constante entre pessoas das Blogueiras Feministas e esses grupos — assim como procuramos sempre uma intersecção com outros movimentos, com outras lutas.
Enxergo uma pauta em comum entre vários grupos e vejo muita solidariedade. Mas não vejo vocês além das telas, das fotografias, das declarações apressadas e pouco esclarecedoras. Li, inclusive, uma carta aberta de Gabi Santos, militante que decidiu abandonar a Femen Brazil por se ressentir com a falta de esclarecimentos para uma série de questionamentos postos, tanto a respeito do grupo em si, quanto sobre posicionamentos da Sara em relação a política e sociedade.
Não vim aqui passar receita de bolo, sou uma dessas pessoas jocosamente chamadas de “militante de sofá”— acho que uma das coisas que posso fazer é produzir e repercutir conteúdos, debater, discutir e, não me furto a essa participação, ainda que tenha gente disposta a dizer que a militância só vale se sair à rua de cartaz na mão. Porém, sinto falta em vocês de clareza, abertura, transparência e diálogo. De maturidade. De consciência de que para brincar com a mídia não tem que ter só disposição, mas tem que ter habilidade, tem que ter jogo de cintura e muita, muita reflexão, muita autocrítica, muita atenção às contradições internas e às aparentes.
Posso dar um exemplo? Questionada pela Marília Gabriela sobre a hipótese de aceitar algum convite para posar nua em uma revista masculina, Sara Winter, apresentando-se naquele contexto como representante da Femen Brazil, fez uma diferenciação entre o “nu artístico” e o nu com “poses sensuais”. Então, olha só, não parece a vocês tênue demais a linha entre o “nu artístico/político” e o “nu sensual”? Eu acho caduca essa negação da sensualidade, essa insistência na separação do que é “artístico” e “sensual”. Moralista mesmo.
Nu é nu. a Demi Moore grávida na capa da Vanity Fair era grávida, a mulher grávida tem aquela aura de sacralidade, mas é sensual também. A italiana, Cicciolina, protestava com os seios de fora, era declaradamente política e era sensual, vinte anos atrás ou mais. Daí, tenho essa dificuldade gigante em entender um movimento feminista cujo carro-chefe é o uso do corpo para fins políticos e que deixe ir a público uma posição recalcitrante de julgamento sobre o uso do corpo — e se declare apolítico (embora eu ache que vocês confundem “apolítico” com “apartidário” e embora também eu ache que essa história de desvinculação político-partidária pode não estar muito bem contada).
Sara Winter falou sobre o posicionamento da Femen (não necessariamente o grupo brasileiro) e sobre prostituição. Disse que a educação pode ser um instrumento de combate à prostituição, que a pessoa que recebe educação não vai precisar escolher se prostituir. Então, vem cá, não tem prostituição onde as pessoas são “educadas”? Onde há altos níveis de escolarização e conscientização da sociedade? Por que essa vitimização da prostituta como alguém que precisa ser “salva”, nos moldes do clichê “eu vou tirar você desse lugar”? Complicado, não? Não se preocupem, a prostituição é um dos pontos de grande discussão entre feministas. Poré, o debate precisa partir de alguma base e deve prescindir de julgamento.
Então é isso. Há muitas de nós nos organizando em grupos pelo mundo. Um deles é o de vocês, que acabaram de trazer a Femen ao Brasil e não deixaram muito claro a que vieram. O movimento feminista no Brasil tem pautas estabelecidas, lutas e reivindicações. O feminismo ao qual me integro é coletivo, colaborativo e inclusivo. Não “seleciona”, mas busca acolher (e se bate duramente se isso não ocorre). Meu feminismo é aquele que se questiona, se aperfeiçoa, bate cabeça, mas dialoga. Questiona e responde perguntas, se coloca à prova. Aprende, reflete e busca a coerência, prima pela solidariedade. Nesse feminismo, o melhor é o plural. Seria bom poder dialogar para sabermos se o neofeminismo está na luta conosco também.
Boa sorte a vocês.
[+] Nota de esclarecimento da Femen Brazil.
[+] O neofeminismo e o neonazismo por Maíra Kubik.
[+} Nosso Brasil se escreve com “S” e nosso movimento não é assim não por Priscilla Caroline.
[+] Femen Brazil por Deborah Sá.
[+] Minha opinião sobre o Femen por Lola Escreva.
[+] Sobre o Femen Brazil e sobre os múltiplos feminismos contemporâneos da Marcha das Vadias/DF.
[+] Posicionamento da Marcha das Vadias de Curitiba sobre o Femen BR.
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*Esse post não seria o mesmo sem as contribuições e o olhar crítico de Bia Cardoso, Maíra Kubik, Liliane Gusmão, Renata Andrada, Jackie Frutuoso, Kika Del Piero e Verô Souza.