Final de tarde de domingo. Um vento leve sopra e, com certa crueldade, gela a espinha. Faz 5 graus em Montmartre. O sol já se pôs. Foi um belo espetáculo alaranjado. O carrossel está lotado, girando sem parar. Lá parece mais quente. Enquanto aguarda sua vez na fila, a criança olha para o pai e para a mãe e, em seguida, para os brinquedos. E volta para a mãe. E para o pai. Tenta decidir-se entre montar no pônei ou no avião. É uma questão.
Dentro da banca de jornais ao lado, só o proprietário. Alguns poucos passam e prestam atenção nos títulos em destaque. A vitrine da direita parece a mais interessante: vários dão-se ao trabalho de virar a cabeça para fitá-la.

O que ela teria de tão especial?
São três mulheres. Posam lado a lado. Seios de fora e flores nos cabelos. Não, não é uma pintura renascentista. É uma foto. Bastante nítida e aparentemente sem muitos retoques. Não foi feita nas ruas, mas em estúdio. Manifesto enclausurado. Luzes artificiais que queimam e fazem as modelos suar. Persistem. Sacrifício em nome da causa?
Elas vestem jeans. Apenas calças jeans. Não aquela azul corriqueira, é verdade – há certa experimentação. Duas delas trazem os braços na cintura, como se estivessem nervosas. (Mas nervosas com o quê?) A terceira, em destaque, levanta a bandeira azul, branca e vermelha, as cores da França. (Uma republicana? Uma mártir talvez?). Nos corpos, dizeres indicam que vieram para o embate. Pintaram-se para a guerra. (Mas qual?)
Têm um olhar direto. Encaram. Não titubeiam. Peito insuflado, barriga para dentro. Não estão para brincadeira. Posar é coisa séria.
Sou vista ou vejo?
Elas me olham. Veem ali uma feminista um pouco estarrecida e um tanto reflexiva. Sua altivez envergonha meu questionamento sobre os métodos. Mas o estranhamento permanece. Elas sabem do entorno. Não têm dúvidas de que ali também estão Playboy, Sexy e todas as suas variações. Com mulheres igualmente despidas.
As letras pouco garrafais tentam explicar, por meio da exclusão: não são “nem putas, nem sutiãs”. É aí, com essas palavras, que se faz a distinção. Elas não têm a prostituição como ofício e não são um objeto sexual.
Mas conseguem não sê-lo?
Demarcam que o corpo é seu território. E quando ele é reproduzido em milhares de páginas pelo mundo ainda é possível delimitar uma propriedade? Ou essa imagem já ganhou aura própria, sujeita a qualquer tipo de interpretação e percepções?
Em fontes menores ainda, no subtítulo, aparece o que deveria ser a palavra-chave: “NEOFEMINISTAS”.
Deu para entender? – elas perguntam.
Ainda não entendi, juro. Eu sei, racionalmente, que é uma maneira eficaz de chamar a atenção e de dizer que o corpo é nosso e fazemos o que bem entendermos com ele. Inclusive mostrá-lo. Inclusive posarmos para revista. Mas não consigo. O embrulho no estômago. A dúvida que paira. A angústia. A revolta contra o mundo machista. Um turbilhão. Neo por quê? Pela insubordinação que se subordina ao entrar na mesmíssima condição da qual pelo menos uma parte das mulheres feministas quer sair? Por quebrarem estátuas e invadirem loja? E as mulheres da Via Campesina, que em 2006 destruíram uma área da Aracruz Celulose no Rio Grande do Sul, não inovaram não? E ao mesmo tempo não repetiram tantas outras? Neo em quê? Para quem? Por quem?
Anoitece em Paris. A banca logo vai fechar. Elas ficarão guardadas até amanhã. Eu guardarei apenas dúvidas. Até que ponto podemos usar o hegemônico como instrumento de batalha sem nos perdermos nele?
Adoro essa cidade.